Não é que odeie o automóvel. Nem mesmo que o despreze ou lhe seja indiferente, não é isso. Apenas gostaria de não precisar usá-lo. Ou de precisar o mínimo possível.
Cidade boa é aquela que se faz a pé. Você caminha e já se exercita um pouco e vê as pessoas e as coisas. De carro, você não vê nada, só o fluxo dos outros carros, tem que cuidar de não bater. Estando a pé, você, no máximo, pecha nas pessoas e conversa com elas. Caminhar é um estímulo à convivência.
Porto Alegre já foi uma cidade mais andadeira. Era uma delícia passear pelo Centro, tempos atrás, o que se fazia descansado, de mão no bolso, admirando as vitrines. Na Rua da Praia, pulsava o coração do Rio Grande. Era lá que tudo acontecia. Não por acaso, um dos clássicos da cidade é o Anedotário da Rua da Praia, de Renato Maciel de Sá, editado pela L&PM. É um livro divertido, cheio de vigor e de nostalgia. Se você ainda não leu, ainda não é porto-alegrense.
Outro livro porto-alegrense de raiz é Os Ratos, de Dyonelio Machado. Uma obra-prima. Um dos mais poderosos romances da literatura brasileira. Passa-se durante um único dia no centro de Porto Alegre, entre os anos 1930 e 1940. O protagonista, Naziazeno, percorre as ruas e os pontos comerciais conhecidos da cidade. Corra agora ao primeiro sebo, caso você ainda não tenha esse romance. Você o lerá inteiro sem nem piscar.
Essas histórias se passam na época grandiosa da cidade. A época do Centro. Não há, em todo o Rio Grande, outro lugar com mais tradição e beleza arquitetônica do que o centro da Capital. Até meados dos anos 1980, o porto-alegrense trabalhava, comprava e se divertia no Centro. O porto-alegrense, sobretudo, caminhava no Centro, como o Naziazeno de Dyonelio ou como os personagens engraçados do Anedotário.
Mas foram muitos os golpes que o Centro sofreu, quase todos de mesma natureza: desnorteados pela pressão da pobreza, os governantes cederam à demagogia ou à solução fácil.
Um exemplo: um sujeito qualquer, vendo-se desempregado, comprava bugigangas baratas no Paraguai para vendê-las em Porto Alegre. Ia para a via mais importante e mais movimentada, a Rua da Praia. Lá, estendia uma colcha no chão e sobre ela colocava os produtos em oferta. Transformava-se em camelô. Como era aquele o seu meio de sobrevivência, prefeitos e vereadores permitiam que ele ficasse naquele ponto privilegiado. Só que o camelô prejudicava a circulação de pessoas e o movimento das lojas, que, estas sim, pagavam impostos e davam empregos. As pessoas, desta forma, evitavam a Rua da Praia, as lojas faliam, o número de desempregados aumentava e, com eles, o número de camelôs.
Os camelôs mataram a Rua da Praia, e a morte da Rua da Praia foi, um pouco, a morte do Centro. Junte-se a isso a falta de segurança e, pronto, o Centro virou um lugar remoto para muitos porto-alegrenses.
Agora, veem-se algumas tentativas de reabilitação do Centro nas esferas pública e privada. O investimento da Lebes no tradicional ponto da Guaspari é uma ousadia empresarial que tem de ser respeitada; a Noite dos Museus, ocorrida meses atrás, é uma iniciativa criativa de grupos particulares que contaram com o apoio estatal; e o reforço do policiamento é o reconhecimento das autoridades de que essa área é nobre e merece tratamento diferenciado. E merece mesmo, como merece. A retomada do Centro é fundamental para o renascimento de Porto Alegre. É a partir do Centro que a cidade pode se recuperar e voltar a ser aquela capital de estilo europeu que rebrilhava no romance de Dyonelio. É a partir do Centro que os porto-alegrenses poderão, de novo, esquecer um pouco do automóvel, caminhar por sua cidade, olhar uns nos olhos dos outros e, talvez, apenas conversar e ver a vida passar.