A manhã começou belíssima, dias atrás, mas, ainda cedo, antes das oito, a cerração baixou. Meu filho olhou pela janela e levou um susto:
– O que é isso, papai???
Estando tanto tempo fora do Brasil, o guri provavelmente não se lembrava mais de certas peculiaridades do clima no Rio Grande do Sul. Tentei explicar o fenômeno de forma simples:
– É uma nuvem que desceu do céu.
Aquilo o deixou ainda mais deslumbrado.
– Que maravilha! – exclamou. – Isso vale uma crônica, papai!
Sorri. Nunca me ocorreu escrever sobre a cerração. O que há para ser escrito a respeito, afinal? A neblina, por aqui, não tem graça nenhuma. Em Londres, sim, o nevoeiro tem seu charme: é o fog, dá mistério à cidade.
Se bem que, no princípio dos anos 1950, houve o Big Smoke. Essa Grande Fumaça foi exatamente o que o nome sugere: uma imensa capa de poluição que pairou sobre Londres durante uma semana inteira.
Na verdade, o famoso fog londrino sempre foi mais obra do homem do que da natureza. No começo do século 18, Londres era sede do império onde o sol jamais se punha e também a cidade onde o sol raramente era visto. Foi lá, na Inglaterra, que estourou a Revolução Industrial. Homens, mulheres e crianças trabalhavam 16 horas por dia, as chaminés das fábricas pontilhavam a área urbana e Marx, morando em Manchester, impressionado com o que via, sentou-se sobre seus furúnculos e escreveu O Capital, obra que, no futuro, seria a causa de muitas discussões no WhasApp.
Essas fábricas que foram a base do livro de Marx foram, também, a base do fog. A fumaça que produziam turvava o ar da cidade.
Os londrinos já estavam acostumados com isso, mas, em 1952, a Ilha foi abalroada por um inverno mais rigoroso. Para se aquecer, as pessoas usavam fogareiros, cada casa tinha pelo menos um fogareiro abastecido com carvão. Só que o carvão utilizado era de má qualidade, porque as reservas boas haviam se esgotado na II Guerra. O resultado foi aterrador: a fumaça das chaminés misturou-se à dos fogareiros, a massa de ar frio empurrou a neblina para baixo e os londrinos se viram em meio a um fog denso, escuro e nauseante, com cheiro insuportável de enxofre. Num único dia, morreram 4 mil pessoas, a maioria crianças pequenas e velhos abatidos por infecções pulmonares. Mais tarde, o número de vítimas se elevaria a 12 mil. Londres parou. As autoridades pediram, pelo rádio, que os moradores abandonassem seus carros nas ruas e não saíssem de casa. O metrô e os ônibus tiveram seu serviço interrompido. As lojas permaneceram fechadas.
Foi uma tragédia. E, ainda assim, o fog preservou sua boa imagem para a posteridade.
O nosso fog até causa alguns problemas para os aviões que chegam ou que partem do Salgado Filho, mas, afora isso, não faz mal a ninguém. Ao contrário, a gente pode inclusive prever o tempo, ao lembrar-se do velho ditado popular: "Cerração baixa, sol que racha; cerração na serra, chuva na terra".
Repeti esse dito para o meu filho, depois do que ele concluiu:
– Ah, então o sol vai rachar...
Pois rachou. Por volta das 11h, o céu estava de um azul impecável e o amarelo do sol se derramava pelos telhados, os ipês roxos pareciam ainda mais roxos e o calor do dia nos fez pendurar os casacos nos ombros. Muito lindo, muito bom, muito porto-alegrense. Até poético é. E, como pediu meu filho, valeu uma crônica.