Os americanos inventaram as histórias em quadrinhos, são os campeões da modalidade, mas a melhor de todas as hoje chamadas HQs, em todos os tempos, não é americana; é francesa.
Asterix, da época de Uderzo e Goscinny, é uma obra-prima. Há vários ingredientes que tocam a alma do leitor. Os heróis, Asterix e seu companheiro Obelix, são alegres, leais e desapegados. Como não gostar de alguém que é alegre, leal e desapegado? Seu único interesse é viver entre amigos e se repimpar em banquetes com fartura de cerveja cremosa e carne de javali, o que me faz lembrar das antigas noites no Lilliput.
Asterix e Obelix resistem com bravura e inocência a um inimigo poderosíssimo, nada menos do que o Império Romano dos tempos de Júlio César. Ou seja: é o pequeno despretensioso enfrentando o grande opressor, tema caro à humanidade desde que David acertou um fundaço no olho de Golias, há 3 mil anos.
E, num último e indispensável tempero psicológico, Asterix e Obelix viajam. Homero já ensinou, 25 séculos atrás, que toda literatura é uma viagem, porque a vida, de certa forma, é uma viagem.
Goscinny, o argumentista, baseia a história de Asterix em um clássico escrito por ninguém senão o próprio Júlio César, A Guerra Gaulesa.
César viveu e lutou na Gália durante nove anos. Além de conquistar aquela região bravia, achou tempo para compor uma das narrativas mais belas da Antiguidade, e isso sem laptop nem nada, só pena e papiro.
Em A Guerra Gaulesa, aparecem, por exemplo, Lucius Vorenus e Tito Pulo, legionários que são os personagens principais da imperdível série Roma (se você ainda não viu, veja!). Vorenus e Pulo da vida real, aliás, são os únicos legionários citados nominalmente no livro de César.
César usa a história deles para ressaltar o valor do companheirismo e da lealdade entre os soldados. Vorenus e Pulo, na verdade, eram rivais. Se não chegavam a se odiar, é certo que não gostavam um do outro.
Durante um duro combate contra bárbaros que hoje corresponderiam aos belgas, Pulo fez um avanço temerário e acabou cercado de inimigos, sem espaço para manejar suas armas. Vorenus, que o havia seguido, irrompeu no bolor, matou um inimigo e produziu confusão suficiente para distrair os outros. Foi o suficiente para Pulo empunhar sua espada espanhola curta e habilitar-se novamente para o combate. Assim, os dois, ombro a ombro, protegendo-se mutuamente, qual Kannemann e Geromel, retalharam uma série de belgas e recuaram em segurança para o local de onde os observava a legião. Os demais soldados, assistindo à cena, os receberam numa explosão de vivas e aplausos.
Bonito.
Mas voltemos a Asterix.
Se você é leitor de Asterix, e espero que seja, decerto estará familiarizado com a batalha de Alésia. É um nome do qual os gauleses não querem nem ouvir falar. Alguém pergunta onde fica Alésia e um gaulês responde como se fosse um alegretense:
– Não me perguntes onde fica Alésia!
É que Alésia foi o palco da derrota final da grande revolta gaulesa liderada por Vercingetórix.
O que aconteceu em Alésia foi extraordinário e, quando emprego esse adjetivo, faço-o com precisão, porque acredito que nunca antes havia ocorrido algo semelhante e nem ocorreu depois. Demonstra o gênio de um homem e como a História, às vezes, depende de uma única pessoa, para o bem ou para o mal. Já falo mais a respeito.