Ontem me deu uma saudade da casa da minha avó. Ficava no número 355 da Rua Dona Margarida, em frente a um cinamomo antigo. Hoje essa pequena rua do bairro Navegantes está acinzentada pela dureza das indústrias e pelo rio de carros que corre o dia inteiro entre suas margens, mas, na época da minha avó, os vizinhos se cumprimentavam ao sair para o trabalho no começo da manhã e, no começo da noite, fincavam suas cadeiras na calçada.
Todas as casas eram de madeira. Na frente da casa da minha avó, havia o açougue do seu Milton, gremista fundamentalista que, quando o Grêmio perdia, permanecia dois dias inteiros trancado no quarto, sem falar com ninguém. Mais adiante, na diagonal, estava plantado um sobrado misterioso, habitado por pessoas vindas de algum país do leste da Europa, todas elas louras e silenciosas. Às vezes, à noite, ouviam-se gritos de mulher escorrendo das janelas de algum quarto no segundo andar. Essa mulher que gritava jamais era vista. Os vizinhos contavam histórias aterrorizantes sobre o que podia estar acontecendo com ela lá dentro, e eu e meus irmãos várias vezes fizemos planos de entrar clandestinamente no casarão e descobrir o que se passava.
Seguindo na direção de onde um dia existira o campo do Renner, tinha uma tabacaria chamada Ao Carancho. Eu era fascinado por esse nome. O que seria um carancho? Disseram-me que é um passarinho, mas não tem lógica. De qualquer maneira, o Carancho vendia de tudo: bolinha de gude leitosa, aça e olho de gato, figurinhas de álbuns de jogadores, gibis, maria-mole, bala quebra-queixo e uns chocolates da Neugebauer muito bons, o Beijo de Moça e o Beijo Africano.
Isso me leva a refletir: seria o Beijo Africano um nome politicamente incorreto?
Talvez a Neugebauer enfrentasse dificuldades hoje em dia.
A Neugebauer era um dos orgulhos do bairro, assim como a Renner, que já citei. Minha avó foi costureira da Renner, nos tempos de solteira. Orgulhava-se de ter sido considerada a melhor da fábrica, a número 1, a Pelé do corte & costura. Quando casou-se, pediu demissão, para infinita tristeza da família Renner. Nunca mais ninguém cerziu como ela.
Minha mãe torcia para o time da empresa, o Renner, campeão de 1954. Conheci dois jogadores daquela equipe: o goleiro Valdir de Moraes e o meia-esquerda Ênio Andrade. Uma vez, quando estava numa cobertura da Seleção Brasileira, o Ronaldinho Gaúcho me perguntou:
– Quem é que tu achas que bate melhor na bola por aqui?
Olhei em volta. Romário? Ronaldo? Rivaldo? Roberto Carlos? O próprio Ronaldinho?
– Não – ele respondeu. – É o Valdir de Moraes.
Aí fui observar o Valdir de Moraes dando treino. Impressionante. O homem não errava um passe, um lançamento, um chute. "Vai no travessão!", avisava. E ia no travessão.
Falei com ele e ele me contou que, nos tempos do Renner, consumia tardes inteiras repetindo chutes com o Ênio Andrade e que, assim, se tornaram especialistas.
– Só que o Ênio era muito melhor – reconheceu.
Lembrei de uma história ocorrida com o Ênio quando ele treinava o Grêmio, no começo dos anos 1980. Leão, que era o goleiro do time e da Seleção, brincou:
– Chuta o pênalti aí, velho. Se você acertar, pago uma cerveja.
– Nada disso – rebateu o Ênio. – Vou chutar 10 pênaltis. Se você pegar um, pago um engradado.
Ênio acertou os 10.
Meu avô dizia que ele nunca havia errado um pênalti. Que era melhor do que Zico.
Bem, Zico errou um pênalti.
Mas ainda não cheguei à casa da minha avó. Chegarei amanhã.