Em sua trajetória de 50 anos na advocacia, Hélio Neumann Sant’Anna teve várias vitórias. Mas uma delas é especial: a Lei nº 8.081, cujo texto ele concebeu e que foi sancionada em 1990. Para além do número, essa legislação tem um nome notório: Lei Antirracismo. Foi ela que embasou a decisão do julgamento a condenar Siegfried Ellwanger, que publicava livros negando o Holocausto. Ellwanger foi condenado por racismo, decisão que se apoiou na tese principal de Sant’Anna: não existe diferença entre as pessoas de etnias distintas. Em 2019, a lei passou a abranger também a homofobia e a xenofobia.
Hoje com 85 anos, o advogado tem origem judaica e raízes familiares na Polônia. Vive em Porto Alegre, onde tem um escritório junto à filha, a também advogada Helena Druck Sant’Anna. No local, mantém nas paredes fotos de antepassados judeus, alguns deles mortos em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Ele concedeu a seguinte entrevista a GZH.
Quais são as suas lembranças da sua história de criação e aprovação da Lei nº 8.081?
Em 1989, eu era diretor jurídico da Federação Israelita do Rio Grande do Sul (FIS). Samuel Burd, que era o presidente, meu amigo, convidou-me a trabalhar com ele. Naquele momento existia uma lei, que havia sido criada com a promulgação da Constituição de 1988 (leia mais sobre as legislações brasileiras contra o preconceito ao final desta entrevista). Mas ela precisava ser regulamentada para ser usada na Justiça. Enquanto isso não ocorria, percebi que havia muitas reclamações de pessoas insatisfeitas com a publicação de livros por parte do (Siegfried) Ellwanger (os volumes, além de negarem o Holocausto, enalteciam aspectos da ideologia nazista). Decidimos contratar dois advogados para fazer pareceres isentos sobre a situação: Alcides Mendonça Lima e Miguel Reale Junior. Trinta dias depois, eles atestaram que, sob a atual legislação, não se podia dizer que havia inter-relação com antissemitismo.
Mas estava claro para o senhor que havia antissemitismo naqueles livros?
Sim, era muito claro. Isso me incomodava muito particularmente, porque eu tinha perdido muitos parentes na Segunda Guerra Mundial. Meu bisavô, por exemplo, foi exterminado pelo regime nazista.
Isso o motivou a conceber a lei, após esses pareceres de Mendonça Lima e Reale Junior?
Sim. Se não havia amparo legal para chamar aquilo de antissemitismo, como os dois pareceristas diziam, era preciso fazer algo que desse esse amparo. Então fui para a Constituição fazer uma análise minuciosa. Eu sou egresso do sistema militar, pensei como tal e não desisti. Pensei: se não há uma lei, temos de fazer uma. Não podíamos deixar aquilo impune.
Só que, para ter uma lei aprovada, o projeto precisa ser apresentado por um parlamentar.
Foi aí que nós, do FIS, pedimos uma audiência com o Ibsen (Pinheiro, do PMDB-RS, na época presidente da Câmara dos Deputados). Expliquei para ele que tínhamos um problema, não estávamos amparados por legislação alguma e estávamos sendo agredidos diariamente. Eu recebia muitas reclamações de pessoas da comunidade incomodadas com esses ataques do Ellwanger. O Ibsen topou na hora capitanear a causa no Congresso.
Qual é a base jurídica para sustentar que aquilo era racismo?
Os direitos humanos.
Ellwanger não podia rebater que se tratava de liberdade de expressão?
Não. O que estava expresso nos livros, entre outras coisas, era que os assassinatos nas câmaras de gás seriam uma “invenção”. Não se pode dizer isso. Resumidamente, minha tese é de que existe um limite entre liberdade de expressão e preconceito étnico, racismo.
Por que era racismo e não liberdade de expressão?
Porque os atos que atentam contra a coletividade superam essa ideia de liberdade individual de expressão. Tratava-se de uma perseguição por conta da religião (judaica). A lei, então, passou a proteger contra esse tipo de discriminação.
E depois da aprovação da lei?
O então presidente, Fernando Collor, sancionou-a, e o racismo passou a ser crime.
Não existe direito irrestrito. É o que ocorre com a ideia da liberdade de expressão. Você vive em comunidade, não pode interferir na convivência com os demais membros do grupo pregando contra eles.
O senhor avalia que até ali não havia nada na lei que caracterizasse o crime de racismo?
Não. Nada. Era um espaço vazio.
Como foi encaminhada a ação contra Ellwanger?
Perdemos na primeira instância, mas, no Tribunal de Justiça, em segunda instância, nos deram razão. Ganhamos. O Ellwanger foi condenado por racismo e teve que recolher os livros.
Qual foi a sua reação?
Euforia. Havia sido ainda um primeiro passo, mas um primeiro passo firme. Com certeza foi o primeiro caso de crime de racismo no Brasil. E talvez tenha sido no mundo todo.
Tecnicamente, o que Ellwanger podia ter feito e o que ele fez, em que pese a tese absurda de negar o Holocausto?
Basicamente, ele feriu a convivência pacífica das pessoas em comunidade. Essa é a questão. Nós nos preocupamos em redigir um projeto lei que não discutisse História, porque discutir História é algo que entra na subjetividade e nas interpretações, cada um pode fazer o juízo que for sobre os acontecimentos do passado.
Sendo judeu, como foi a sua reação à condenação de um negador de um episódio tão traumático da História?
Senti muito alívio, como se eu estivesse me livrando de um pesadelo. E estava. Eu conheço os dramas dessas pessoas. Todos os meus antepassados que ficaram na Polônia morreram.
Depois da condenação do Ellwanger e da retirada dos livros dele de circulação, houve algum tipo de retaliação contra vocês?
Nada explícito, não.
Aquilo que o senhor pensou lá atrás, hoje é amplamente usado para condenar racistas, homofóbicos e xenófobos?
Olha, sinto uma satisfação imensa por isso. Ajudamos as pessoas a viverem, e a viverem bem.
O combate ao ódio só ocorre quando as pessoas se sentem de alguma forma respaldadas pelas autoridades constituídas. Aí elas podem falar, denunciar, combater de fato. E, nesse combo, entram o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Todos esses poderes precisam dar esse respaldo.
O que o senhor achou do fato de, mais recentemente, a lei passar a abranger os crimes de xenofobia e homofobia?
A lei é de 1990. Na época, pensamos em abranger o mais amplo leque de minorias. Por isso incluímos a discriminação por raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional. Na época infelizmente não se falava em homofobia, mas é evidente que, olhando para trás, hoje, pode-se constatar que havia muito esse tipo de preconceito. Ocorre que a questão de gênero sequer era debatida, e a comunidade LGBT+ ainda não tinha se organizado como segmento da maneira como está organizada hoje. Felizmente a nossa sociedade evoluiu também a esse ponto, e a busca dos direitos iguais foi uma grande conquista. Aliás, nosso escritório representou uma das primeiras ações no país de reconhecimento de união homoafetiva. Logo, a inclusão da homofobia como crime como evolução da Lei nº 8.081 me trouxe muita satisfação. Quanto à xenofobia, no meu entender, a disposição da lei originária, que em seu texto inclui a discriminação por “procedência nacional”, já englobaria a xenofobia.
Surpreendeu o fato de não haver nenhuma lei criminal antes?
Sim e não. Sim porque o instinto é pensar, não só como advogado, mas como cidadão, que a toda a violência pode ser combatida a partir de um amparo legal. E esse amparo não havia. Mesmo que o antissemitismo seja milenar. Havia uma falta de proteção. Mas, como eu disse antes, eram outros tempos. Não havia esse debate ainda, ao menos da forma desenvolvida como ele se apresenta hoje.
O senhor acredita no fim do racismo, já que agora, cada vez mais, existe punição?
No fim do racismo de uma forma geral e absoluta eu não acredito. Porque me parece que está arraigado no ser humano esse espírito de luta e vitória, de quem ganha e de quem perde, e de perseguição como consequência disso. Os judeus, sem ter culpa alguma, são um povo historicamente perseguido. Por isso é preciso punir, impor o respeito quando ele não existe.
Há casos recentes rumorosos, como o grupo de apoiadores da ideologia nazista que foram presos em São Pedro de Alcântara (SC) no final de novembro. Foram oito, sendo quatro gaúchos. Todos serão levados a júri em Porto Alegre neste ano. Será com base na lei antirracismo?
Sim. Que bom que temos como combater esse tipo de crime, que tanto está nos ameaçando, recorrentemente, como se pode ver a partir desse e de outros casos. De uma hora para outra, esse tipo de crime despenca nas nossas cabeças. E temos esse amparo legal para combatê-lo.
Outro caso específico das últimas semanas de 2022 foi a prisão de um neonazista, em São Paulo. Ele gravou um vídeo ofendendo uma pessoa. Contra ele, poderá ser usada a Lei Antirracismo?
Não vi o vídeo. Mas, sem dúvida, dependendo do conteúdo da ofensa, pode ser enquadrado em crime de racismo ou injúria racial. Essa evolução, aliás, é outra evolução positiva da Lei nº 8.081. A inclusão, no Código Penal, da injúria racial entre crimes contra a honra ajuda a tipificar os crimes de maneira mais detalhada, precisa.
O crescimento da extrema direita, com discurso autoritário e ao mesmo tempo armamentista, pregando a discórdia, é motivo de preocupação, na sua opinião?
Sim. Há um aumento exponencial da intolerância, dos discursos de ódio, e isso é muito preocupante. Estamos vivenciando isso não só no Brasil, mas em diversas partes do mundo. Há estudos que já apontam o aumento de 270% de células neonazistas no Brasil nos últimos três anos. Isso é assustador. Atualmente, só aqui no país, há mais de 500 células de grupos neonazis identificados. Mas, ao mesmo tempo em que houve esse crescimento, o combate tem sido igualmente maior, existindo inclusive delegacias especializadas nesse tipo de crime. E o Judiciário tem se posicionado afirmativamente no combate a isso. Outra questão muito importante é que as vítimas não têm ficado mais caladas. Faz toda a diferença, além de punir, trazer os episódios para o conhecimento das pessoas, para o debate público. Minha percepção é de que a tolerância zero à discriminação se avizinha. Ou seja, ao mesmo tempo em que temos esse aumento da intolerância e dos discursos de ódio, temos também uma evolução nas punições, no combate a esse tipo de situação. Trata-se de uma realidade positiva. O combate ao ódio só ocorre quando as pessoas se sentem de alguma forma respaldadas pelas autoridades constituídas. Aí elas podem falar, denunciar, combater de fato. E, nesse combo, entram o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Todos esses poderes precisam dar esse respaldo.
Me permita insistir no tema liberdade de expressão. Porque isso tem sido usado como argumento para a defesa do ódio e para a imposição da intolerância.
Volto a dizer: não existe Direito irrestrito. É o que ocorre com a ideia da liberdade de expressão. Você vive em comunidade, não pode interferir na convivência com os demais membros do grupo pregando contra eles. E, remontando ao caso específico do Ellwanger, vale acrescentar uma falácia mais específica: a argumentação de que, por se tratar de uma argumentação expressa especificamente em livros, haveria o respaldo desse Direito constitucional que seria a liberdade de se expressar. Não: o que importa é o conteúdo das obras, ou seja, o racismo em si, e não a forma como foi manifestado, por meio de livros ou de que meio for.
O senhor já estudou e trabalhou muito com a intolerância. O que acha que move as pessoas que pregam o ódio?
É realmente muito difícil ingressar na cabeça dessas pessoas, mas sem dúvida os extremistas sentem o ódio que expressam, não conseguem ter tolerância para conviver com o diferente. É algo extremo, uma raiva elevada à potência máxima – só assim se pode alcançar o ponto de não admitir a coexistência de outros seres humanos. É incrível que haja pessoas com a crença de que há alguns superiores aos outros. Isso é realmente difícil de entender. Mas acredito que seja essa a questão, a dificuldade de conviver com o diferente, com o que, absurdamente na cabeça deles, seja inferior.
A tornozeleira eletrônica funcionaria para esse tipo de criminoso?
O uso de tornozeleira faz parte da programação de regime de penas em execução. Mas lembremos que o Laureano (Vieira Toscani), gaúcho que é um dos presos em Santa Catarina, já foi condenado. Ele cumpriu parte da pena em regime fechado. E, no caso, ao que parece, a tornozeleira não funcionou, pois, afinal, ele foi preso em Santa Catarina, ou seja, no Estado vizinho, longe de onde fora condenado.
O preconceito e as leis brasileiras
- O Brasil conhece tentativas de implementação de legislações contra o preconceito desde, pelo menos, 1950, quando o deputado Afonso Arinos (UDN-MG) criou a Lei nº 1.390, que seria sancionada pelo presidente Getulio Vargas em 1951. Conhecida como Lei Afonso Arinos, ela constituía como contravenção penal a distinção de pessoas “por preconceito de raça ou de cor”. A elaboração do texto teve como ponto de partida a recusa de um hotel carioca em hospedar a coreógrafa negra americana Katherine Dunham.
- Em 1989, foi criada a Lei nº 7.716, que deu nova roupagem à Lei Afonso Arinos e dispôs a igualdade perante à lei no que se refere a etnias e origens, conforme a Constituição de 1988. Já a Lei nº 8.081, de 1990, tornou crime “os atos discriminatórios ou de preconceito de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional”. Nos anos seguintes, houve outras atualizações do texto, especialmente com a Lei nº 9.459, de 1997, e a decisão do Supremo Tribunal Federal de criminalizar a homofobia e a xenofobia com base na mesma legislação, em 2019.