Todo mundo sabe — ou deveria saber — a essa altura dos acontecimentos que a eleição presidencial dos Estados Unidos não foi fraudada. A narrativa que deu a origem à boataria começou a ser construída antes mesmo do pleito, percorreu todo o processo eleitoral e continuou conquistando corações e mentes mesmo depois das dezenas de recontagens de votos nos Estados.
Graças a sites populistas de extrema-direita, a fake news de 2020 sobreviveu em 2021 até antes da posse do — legitimamente eleito — Joe Biden, e chegou ao Capitólio pela invasão dos bárbaros instigados por um presidente decadente e desmoralizado.
Pois bem, Biden assumiu, Donald Trump voou para o ostracismo e o assunto da fraude eleitoral parecia sepultado até a semana passada, quando a empresa Smartmatic quebrou o silêncio e reavivou o debate. Dona do software que faz a contagem dos votos, ela decidiu levar aos tribunais a emissora de TV Fox News, alinhada com Trump.
O motivo é ter dado vazão "noite após noite em seus noticiários, que foram para milhões de telespectadores", às informações infundadas difundidas pelos representantes legais de Trump. Um deles, o mais notório, o ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani.
Não há problema em estar alinhada com o presidente, como outras emissoras e jornais manifestamente, em seus espaços editoriais, o são. O pecado da Fox foi, no entendimento da Smartmatic, ter franqueado seus espaços à disseminação de conteúdo sem comprovação, carente da mais básica checagem.
O jornalismo independente, responsável, que busca ser imparcial, é a antítese da mentira. Este jornalismo é a vacina para a desinformação.
Este mesmo jornalismo precisa ser plural, ouvir vários lados, buscar a contextualização. Ouvir várias opiniões não significa deixar o caminho livre para que alguém conte uma mentira e fique por isso mesmo.
No caso da Fox, é legítimo abrir espaço para opiniões divergentes. Mas a ação considerada histórica que a Smartmatic moveu é outra coisa: acusa a Fox de referendar mentiras contadas no ar, ao vivo, sem nenhum questionamento.
O dono da Smartmatic, Antonio Mugica, reconhece que muitos canais deram espaço para teorias conspiratórias. Mas foi a Fox, com o seu poder e audiência, que provocou o maior estrago na reputação da empresa. E, por isso, pede na ação US$ 2,7 bilhões.
É provável que o processo se estenda e não chegue a essa compensação. Mas o episódio Smartmatic x Fox nos deixa algumas lições: liberdade de expressão é bem diferente de espaço livre para propagar mentiras, e o jornalismo deve servir como barreira para teorias conspiratórias. Outra: quem está disposto a fazer isso, tumultuando o processo eleitoral, poderá ter consequências bem caras.