Em 1918, Porto Alegre dispunha de seis hospitais — cinco deles precários — e apenas quatro postos de saúde. A capital gaúcha crescia desordenadamente, sem planejamento urbano. Autoridades municipais e estaduais desmereciam a necessidade de organizar melhor a infraestrutura de saneamento e o recolhimento de lixo.
Era uma época em que a cidade recebia mais e mais moradores do Interior, vindos em busca de melhores oportunidades, um fluxo que nunca parou. Porto Alegre tinha, então, 170 mil habitantes — pouco mais de 10% da população atual.
A zeladoria mais empenhada era feita apenas no eixo da Rua dos Andradas, na Duque de Caxias, e olha lá. A Tristeza, bairro populoso que atualmente é o início de uma Zona Sul que se esparrama por quilômetros e quilômetros Guaíba abaixo, era um arrabalde para onde rumavam famílias mais ricas para veranear. A Pedra Redonda era uma praia distante do Centro.
Neste ambiente, desembarcou em Porto Alegre, no final de outubro daquele ano, a gripe espanhola, a grande peste que dizimou de 30 milhões a 50 milhões pelo mundo. Os números são imprecisos, pois não se tinha o controle sobre a população necessário para monitorar todos os casos. Era comum morrer em casa, em questão de horas.
A reconstituição deste período está muito bem feita num livro escrito pelas historiadores Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, A Bailarina da Morte - A Gripe Espanhola no Brasil, que acaba de ser lançado (Companhia das Letras, 375 páginas). Além de oferecer um panorama completo sobre a origem da doença, a disseminação pelo mundo e a chegada ao Brasil, o livro descreve como se deu a pandemia em cada uma das principais capitais brasileiras, entre elas Porto Alegre.
Em que pese a diferença de tempo, 102 anos atrás, são impressionantes as semelhanças entre comportamentos na época e atualmente. Políticos que negaram ou minimizaram a gravidade da doença, por exemplo.
Quando a gripe já provocava centenas de mortos no Sudeste do Brasil, o ministro de Justiça e Interior da época, Carlos Maximiliano, enviou um telegrama tranquilizador — e impreciso — ao governador gaúcho Borges de Medeiros, afirmando que seriam raros os casos de morte de pessoas que "não sofressem de moléstia mortal" — soa atual, não?
Os governos claramente não tinham a menor ideia sobre como liderar uma estratégia de enfrentamento à pandemia. Preocupado com a repercussão negativa, Borges mandou censurar os jornais.
Sem o "pânico"das notícias, a população ficaria mais tranquila. Só que os gaúchos começaram a morrer aos milhares, sem atendimento adequado, em casa ou, até mesmo, na porta de hospitais.
A gripe fez surgir outra praga, "os charlatões ou sujeitos 'espertos' — que prometiam maravilhas de um dia para o outro — e encontraram terreno fértil para a venda dos mais excêntricos produtos: pílulas, chocolates e até cigarros que 'preveniam ou afastavam o mal'" — o ozônio dos dias atuais.
A gripe espanhola também teve a sua cloroquina, um remédio usado sem controle e sem comprovação de cura. Era o quinino, comprado em grande escala nas farmácias e que na época era usado para tratamento da malária.
Como chegou, ela foi embora. De repente, depois de 57 dias e milhares de mortes, a gripe desapareceu de Porto Alegre, deixando algumas lições, algumas delas nunca aprendidas.