A mais nova polêmica envolvendo o Ministério da Educação (MEC) tem chance de gerar repercussão em prefeituras brasileiras. No início do mês, o ministro Abraham Weintraub usou as redes sociais para incentivar a população a pressionar prefeitos e deputados federais a usarem emendas parlamentares para comprar kits escolares, compostos por caneta, lápis, caderno e giz de cera, entre outros itens.
O MEC lançou edital para aquisição de 3 milhões de kits para o Ensino Fundamental, no valor de R$ 406 milhões. A vencedora da licitação, Brink Mobil — Equipamentos Educacionais, é investigada pela Polícia Federal (PF) por corrupção. Assim que soube do contrato, o subprocurador do Ministério Público de Contas da União Lucas Furtado solicitou ao Tribunal de Contas da União (TCU) a abertura de apuração de possíveis irregularidades. O caso será analisado nos próximos dias pela Corte.
A Brink é alvo de inquérito da PF por supostamente ter pago propina na Paraíba em um contrato com o governo estadual. Além disso, em 2018 foi denunciada ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) por formação de cartel em licitações. A empresa e o MEC foram consultados pela coluna, mas não responderam até o fechamento da edição.
O senhor alerta prefeitos para que não adquiram o kit escolar recomendado pelo MEC. Por quê?
Ser gestor público é um risco imenso que a pessoa assume. É necessário pensar na população, evidentemente, e na própria pele. Lembro que a responsabilidade é pessoal. Que o próprio patrimônio e a liberdade desse ou dessa prefeita podem ser chamados a responder. Não é o município, é o gestor que pode responder pessoalmente.
Se o administrador insistir na compra, pode ser levado a responder e, se condenado, ter seu patrimônio comprometido?
Viver é um risco grande. Ser gestor público aumenta. A pergunta é: vale a pena aumentar ainda mais esse risco? Acredito que não. Pois bem, todos estão com os holofotes ligados para essa licitação. Pergunto mais uma vez: vale a pena? Com risco pessoal? Repito: não é o município que vai responder, é o prefeito ou a prefeita, pessoalmente. Se pudesse dar consultoria jurídica, diria: pelo amor de Deus, fique longe disso. Se o prefeito ou prefeita quiser, pode participar dessa contratação, sob sua própria conta e risco. Livre-arbítrio. Mas com as consequências que estão na esquina esperando.
Os prefeitos costumam reclamar bastante do que classificam como “excesso de fiscalização” no país. Como o senhor responde a essa crítica?
Há excesso de fiscalização? Não sabia. O que sabia é que a fiscalização no Brasil é muito falha, quando há. E certamente há a mais importante e eficaz das fiscalizações: a social. Certamente (existe este tipo de fiscalização da sociedade) por não se acreditar nas instituições, em grande parte com razão. Mas as coisas começam a mudar. Tenho esperança de que amanhã (poderá ser diferente). E hoje o prefeito ou a prefeita pode contar com a procuradoria do município, mas como vai ser amanhã, principalmente se um adversário político assumir (a prefeitura)? A AGU (Advocacia-Geral da União) vai defender o ministro caso essa licitação vá adiante. E como ficam os prefeitos? Nenhum futurólogo arriscaria.
Há excesso de fiscalização? Não sabia. O que sabia é que a fiscalização no Brasil é muito falha, quando há.
Preliminarmente, quais são os indícios de irregularidades?
No caso, conforme noticiado, há indícios de conluio entre as empresas e também de sobrepreço. E todo esse conjunto de indícios da existência de irregularidades justifica que não se deve contratar a empresa. Toda essa desconfiança deve ficar bem longe de uma licitação bilionária.
Quais os riscos das prefeituras que se insistirem nos kits escolares?
O risco para os municípios é de embarcarem em uma canoa furada. A Lei de Licitações diz que será nulo o contrato que decorrer de licitação nula. O risco é grande para o gestor, para o município e para a população.
Existem mecanismos que podem impedir que empresas em situação semelhante disputem licitações públicas?
Os mecanismos para tentar impedir são as ações judiciais e aquelas medidas existentes nos tribunais de Contas. Sem mencionar a mais efetiva de todas: a opinião pública. Se essa se coloca contra, nada nem ninguém pode favorecer.
Há alguns anos, um relatório da CGU alertava sobre a péssima execução de fornecimento de material escolar pela empresa. Por que uma empresa com esse histórico não é desclassificada?
Deve ser assegurado a todos o contraditório. Simplesmente proibir resolve? Não. Criam-se empresas novas para fraudar licitações.
O senhor pode falar mais sobre essa prática? É uma maneira de burlar a fiscalização?
Foi criado, por exemplo, o pregão eletrônico. É uma excelente modalidade de licitação. Mas o mercado rapidamente desenvolveu uma prática irregular, chamada coelho, para fraudar. Não falo a respeito para não ensinar irregularidade. Ou seja, o mercado cria práticas irregulares rapidamente para burlar os certames.
A origem da suspeita
- A licitação do Ministério da Educação (MEC) para comprar pelo menos 3 milhões de kits escolares foi alvo de denúncias por fraude e favorecimento à empresa vencedora da licitação, a Brink Mobil
- A ata de registro da licitação do Fundo Nacional de Desenvolvimento à Educação (FNDE), órgão ligado ao MEC e responsável pelo contrato elaborado na gestão Jair Bolsonaro, classificou em primeiro lugar a Brink Mobil, controlada pelo empresário Valdemar Ábila. A Conesul, de Márcio Nogueira Vignoli, aparece como companhia consorciada para também fornecer os materiais
- Vencedora do processo, a Brink possui histórico de suspeitas de irregularidades. A empresa foi acusada, no fim de 2019, de integrar esquema que teria desviado R$ 134,2 milhões do governo da Paraíba. De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, o MEC manteve o negócio mesmo depois de saber sobre as investigações
- Os empresários responsáveis pelas empresas, Ábila e Vignoli, chegaram a ser presos no fim do ano passado por corrupção em licitações da área de educação do governo paraibano, na Operação Calvário II, que prendeu o ex-governador Ricardo Coutinho
- As fraudes também envolveriam a área da saúde. Ábila é acusado de pagar R$ 1,8 milhão em propina e Vignoli, R$ 2 milhões, segundo informações do Ministério Público. Os pagamentos teriam sido feitos para garantir contratos no governo de Ricardo Coutinho, que também chegou a ser preso no ano passado
- Em relação à licitação do governo federal, três empresas diferentes apresentaram oito recursos contra o resultado. As concorrentes acusaram a Brink de obter informações privilegiadas sobre o processo e afirmam que o edital foi direcionado para beneficiá-la
- Sem sucesso, as empresas decidiram recorrer ao TCU. O cancelamento da licitação foi rejeitado, mas foi determinado ao MEC que as regras das próximas concorrências fossem alteradas para evitar novas suspeitas
Contrapontos
O que diz o FNDE
Questionado pelo jornal Folha de S.Paulo no início do mês, o FNDE defendeu o processo licitatório. Informou ainda que as empresas encontravam-se em situação regular quando o processo foi realizado e que a empresa apresentou os atestados de capacidade exigidos no edital.
O que diz Brink Mobil
Em nota, a empresa afirmou à Folha que atua nesses serviços há mais de 30 anos e não tem impedimento de participar de concorrências públicas. Sobre as denúncias na Paraíba, diz que está à disposição da Justiça. “Neste caso (da ata de registro da licitação), o FNDE não comprou o material licitado. São as prefeituras que fazem a adesão ao pregão eletrônico, salvo em poucos casos, nos quais pode ter mínima participação de recursos do Fundo mediante convênio”, diz a nota.
A Conesul não respondeu aos questionamentos do jornal.