Celso Lafer comandou o Ministério das Relações Exteriores quando a negociação do acordo entre Mercosul e União Europeia dava os primeiros passos, no início dos anos 2000. Professor, jurista, escritor, Lafer já representou o Brasil como embaixador junto à ONU e à Organização Mundial do Comércio (OMC). Com o cuidado de um diplomata de longa trajetória, ele avalia os episódios recentes na Amazônia e a troca de farpas entre os presidentes Jair Bolsonaro e Emmanuel Macron, da França.
Como o senhor avalia a condução do governo e da diplomacia brasileira na questão da crise na Amazônia?
Um dos problemas que está na origem das dificuldades é a percepção de que o governo sinalizou menor importância ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável. Mas por que essa crise tem relevância internacional? O tema do ambiente é um dos grandes da pauta internacional, o que não era (antigamente). A partir dos anos 1970, foi crescendo a ideia da fragilidade da natureza e da importância da manutenção dos equilíbrios que integram a vida na Terra. O Brasil teve consciência da importância disso já nos anos 1970. Vale a pena destacar o papel do Paulo Nogueira Neto, que conduziu a Secretaria Especial do Meio Ambiente entre 1974 e 1986. O Brasil deu passo importante quando sediou a Conferência do Rio de 1992 (Rio-92). A conferência produziu algumas coisas importantes, como a convenção de clima, a convenção de biodiversidade, e a declaração do Rio, e consagrou o conceito de desenvolvimento sustentável.
Quais foram os passos seguintes no país?
A partir de 1992, todos os governos brasileiros sinalizaram a importância de uma política internacional de ambiente. O Brasil sempre atuou em uma linha de coerência e consistência, de interesse pelo assunto, adquiriu reputação internacional relevante. A posição do governo Bolsonaro em relação ao tema ambiental sinaliza que o interesse mudou, é menos prioritário. E isso está na origem dessa dissonância entre o Brasil e o mundo. Como o país maneja seu meio ambiente não é apenas de interesse próprio, mas a maneira como conduz isso tem efeitos extraterritoriais. O consumidor, a sociedade, os valores ligados ao ambiente são coisas que estão generalizadas no mundo. Você não exporta produtos sem certificações adequadas, por exemplo.
Que repercussão isso pode ter no médio e longo prazo?
Pode ter, sim, repercussão. O país tinha construído reputação ambiental, de consciência da relevância dos temas do ambiente e do desenvolvimento sustentável, que passa por uma apropriada avaliação do que está ocorrendo: o desmatamento ilegal, o garimpo ilegal. Um exemplo: quando houve a contestação aos dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) com a demissão do presidente (Ricardo Galvão). Os indicadores são de relevo para o Brasil e para o mundo. Se você tem dúvida sobre os dados do Inpe, então chama a administração do órgão e questiona os técnicos sobre suas dúvidas. Não é a desqualificação da instituição e dos seus cientistas que vai mudar a realidade. Quando você coloca em dúvida a credibilidade dos órgãos oficiais respeitados, está sinalizando mais do que a importância dos dados, que está preocupado que essas informações não correspondem com a sua crença.
Isso é ruim para o país?
Sim. Vivemos num mundo interdependente e finito. É por isso que a partir do século 20 começou a haver normas de mútua abstenção, cada um cuida da sua soberania, mas também agrega normas de colaboração. Isso está voltado para encontrar consensualmente caminhos para lidar com problemas que transcendem o Estado e o seu território. O mundo, para o bem ou para o mal, está integrado. Se desconsidera unilateralmente o que acontece no planeta por uma avaliação subjetiva, você cria problemas.
Existe precedente na história recente num embate igual ao que vimos recentemente entre Bolsonaro e Macron?
A diplomacia existe para criar relações amistosas entre povos e você precisa ter consciência que a palavra tem peso, impacto. E que há certo padrão de civilidade se você quer diplomacia como instrumento da inserção internacional. Nesse sentindo, manifestações como a dos dois presidentes não ajudam no entendimento e comprometem a possibilidade da cooperação.
Não conheço sociedade democrática desenvolvida que tenha sido construída em cima de um discurso meramente ideológico de revanchismo. Há declarações e um discurso parecido entre líderes como o presidente Jair Bolsonaro, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump e o novo primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson. O que está acontecendo no mundo?
A democracia parte do pressuposto de convivência no pluralismo, no respeito pelo outro, na civilidade. Manifestações que desconsideram o respeito pelo outro, pelo ponto de vista diferente, vão contra a tradição democrática. No plano democrático, tem as consequências desagregadoras.
Esses líderes governam as principais nações mundiais e conseguem, de certa forma, manter a popularidade. O populismo está predominando?
O mundo está caminhando para este tipo de crise, eu diria, do modelo democrático. O planeta está permeado pela geografia das paixões, não da razoabilidade e nem da racionalidade. Representa o desencanto com as expectativas de emprego e crescimento que viriam com a globalização. Além disso, temos um problema enorme com a crise das imigrações, algo maior na Europa. O America First do Trump é coisa mais de unilateralismo. A China está nesta guerra comercial (com os EUA) também colocando limites à política de Trump. O Brexit está avançando.
O acordo Mercosul-União Europeia é bom?
É bom. A negociação começou quando eu era ministro das Relações Exteriores. É importante para acesso a mercados. Mostra que é importante reger o comércio pelo multilateralismo das regras.
Qual a opinião do senhor sobre o presidente Bolsonaro indicar o filho para embaixador do Brasil em Washington?
Para indicar alguém que não é da carreira, precisa-se ter boa razão. Tem de ser alguém com projeção no mundo cultural, econômico ou político. Antecessores em Washington que não eram da carreira, como Osvaldo Aranha e Walter Moreira Salles, por exemplo, foram grandes embaixadores e equacionaram problemas que o Brasil tinha por méritos e conhecimento que eles tinham. O embaixador é representante do Estado brasileiro. Não pode ser representante pessoal do presidente. É uma obrigação complexa. Não basta ter relação fluida com o presidente. Precisa lidar com o Congresso, com os Estados, com o pluralismo da sociedade americana para poder informar adequadamente o que está acontecendo, não só aquilo que o governo gostaria de ouvir. As repercussões são óbvias.