Em setembro de 2018, políticos e empresários da Metade Sul do Estado reuniram-se, em Camaquã, para debater formas de pressionar o governo a retomar a duplicação da BR-116, entre Guaíba e Pelotas. À época, obras estavam praticamente paradas, sem dinheiro ou perspectiva de ação por parte do governo federal.
No evento em que revezaram-se ao microfone prefeitos, deputados e líderes de entidades, a produtora rural Rosemeri Bartz, 54 anos, pediu a palavra e provocou comoção:
— A duplicação não é só para aqueles que vão e vêm. É, também, para vítimas que ficaram pela estrada.
Um ano antes, Rosemeri perdeu o filho José Júlio Bartz Coutinho, 24 anos, em acidente na BR-116, em São Lourenço do Sul, num trecho onde as obras começaram em 2012 e pararam em seguida.
A partir do depoimento dela, o movimento que pede a duplicação passou a ressaltar vidas perdidas na estrada como forma de pressão ao governo federal.
Qual a importância da duplicação da BR-116 para quem vive à margem dela?
Acabei de ir ao quarto do meu filho, como faço todos os dias, e ele continua igual. Até hoje não consegui mexer em nada. As roupas continuam no lugar, onde sempre estiveram, as roupas lindas dele. Como ele plantava arroz, tinha as roupas para o trabalho, embarradas, engraxadas, e tinha as roupas dele (para sair). Está tudo do mesmo jeito. Vou para aquele quarto e falo com ele. Olho para as roupas dele e penso: que crueldade comigo, que crueldade o meu filho não estar ali. Fico pensando que, se esta BR-116 estivesse duplicada naquela madrugada, ele não teria tido esse acidente em uma colisão frontal. Em uma rodovia que é duplicada, uma colisão frontal tem pouquíssima chance de acontecer, ainda mais com ônibus, um veículo pesado, grande. Então, no caso dele e de tantos outros, se essa BR-116 tivesse duas vias duplicadas, ele poderia até sair da estrada por algum motivo, mas não ter vindo a óbito da maneira que aconteceu. A duplicação não é para encurtar tempo de um ponto a outro, é para salvar vidas. Não é para chegar mais rápido e ganhar tempo. É para ganhar vida. Tenho certeza, pela física, pela lógica: ele teria chance de viver (se o trecho fosse duplicado).
É uma batalha no meio de uma guerra, e essa guerra é a duplicação total"
ROSIMERE BARTZ
produtora rural
Como foi o acidente?
Vai fazer dois anos no dia 3 de setembro. Ele estava indo trabalhar. Saiu de Pelotas para ir a Camaquã, onde plantamos arroz. Ele tinha combinado com os funcionários que chegaria cedo para uma aplicação de herbicida na lavoura. No meio do caminho, um ônibus no sentido contrário bateu de frente no carro que ele dirigia. Tinha muito nevoeiro naquela madrugada.
Agora o presidente anunciou R$ 100 milhões para a duplicação. Como você avalia a notícia?
É uma ótima novidade. Esses 47 quilômetros que foram entregues em quatro anos são uma luta árdua, difícil e de tanta gente. Para 47 quilômetros. Mas é um avanço, é um presente. É uma batalha no meio de uma guerra, e essa guerra é a duplicação total. Esses R$ 100 milhões são muito importantes. Tudo é bem-vindo. Não soluciona, tem muitos quilômetros, há muitos entraves nessa quilometragem que está faltando, muitos lotes parados, muitos lotes emblemáticos, mas é óbvio que é bem-vindo. Mas não é só o dinheiro, não é só a verba. Tem tantos lotes parados que ainda estão faltando por desapropriação e por questões de difícil solução. Mas tudo tem de ter um começo, e o início é o mais difícil. Precisa de empenho, de boa vontade, de entidades, de anônimos.
O fato de a obra ter parado justamente no ponto onde aconteceu o acidente com teu filho aumenta a revolta?
Não causa revolta. Mas lamento profundamente. Só tenho a lamentar. Sendo honesta, do fundo do meu coração, estou tentando assimilar as coisas, a dor é muito grande. Eu sou cristã e tento me apegar a que Deus sabe de tudo, no tempo certo. Quem sabe essa luta, as coisas tem de ter um porquê, tudo tem um motivo, quem sabe um propósito maior de acontecer isso para a gente lutar mais, para ter uma razão real. Quantos familiares ainda choram por terem perdido seus filhos nessa rodovia? Agora, se nada tivesse acontecido, talvez não houvesse essa pressão, talvez não tivesse a sensibilização das autoridades para a dor dos familiares. O maior lamento da minha vida é que o meu filho não teve chance. E essa chance os governantes, as pessoas que têm o poder de decidir não deram a devida importância. As autoridades precisam acordar para essa realidade porque os acidentes continuam acontecendo na estrada. Principalmente no trecho desta região entre as cidades de Cristal e Tapes.
Esse é o pior trecho da região?
É o pior trecho. Se olhar os números de acidentes fatais nessa área, é uma coisa incrível. É muito triste. Agora o Exército está ajudando (a executar parte da duplicação) entre Tapes e Barra do Ribeiro. Passo pelo local e vejo isso toda a vez que vou a Porto Alegre. Não sei se é porque o uniforme do Exército chama a atenção, o maquinário, mas a coisa está fluindo, está acontecendo e aparecendo. Será que já não era de o Exército pegar mais trechos para ocorrer essa aceleração? Enquanto tiver esses recursos, tem de acelerar para a coisa não morrer e ir batalhando por mais lotes, mais verbas, para a coisa aparecer mais.
A senhora pretende fazer alguma manifestação quando a duplicação for concluída?
No trecho da BR-116 (entre Camaquã e Tapes) tinha uma pedra grande (foto ao lado) num formato que lembrava um coração. Nela, pintei as inicias JJ, de José Júlio, e escrevi: a mãe te ama, amor eterno. As pessoas que passavam não tinham como não olhar. Mas ela estava com risco de cair e foi dinamitada pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). Fui avisada antes. Não foi o local do acidente (do filho), mas usei para marcar. O diretor do Dnit foi pessoalmente ver se tinha como deixá-la, mas pela questão de trepidação e chuva, iria cair e provocar acidente. Com autorização, peguei fração dela e farei um coração menor, quando duplicar. Para simbolizar essa luta e o amor pelo meu filho. Estou resolvendo onde colocar, em área permitida, óbvio (na margem da BR). O dia que dinamitaram rasgou o meu coração, mas ela sensibilizou muita gente. A dor da perda e da ausência nunca vai terminar. Como mãe, nunca mais vou ser plena. Um pedaço de mim se foi.