Em 1999, cansados da violência nas estradas e sentindo o peso do diesel corroer os lucros do frete, motoristas autônomos resolveram encostar os caminhões e promover um protesto que tomou as rodovias brasileiras durante cinco dias. No Rio Grande do Sul, houve bloqueios de várias estradas federais que paralisaram o transporte e provocaram desabastecimento em mercados e postos de combustíveis.
Um dos principais líderes daquela mobilização foi o presidente do Movimento União Brasil Caminhoneiro, Nélio Botelho, que negociou a pauta dos motoristas com o governo. Vinte anos depois, caminhoneiros autônomos pressionam o atual governo pela mesma lista de reivindicações: preço do diesel, tabela mínima do frete e valor do pedágio.
Vira a mexe surge a possibilidade de nova mobilização nas estradas. Existe essa chance?
Está todo mundo assustado, a própria população está com medo de que o caminhoneiro repita a greve, como aconteceu no ano passado. Isso é totalmente impossível de acontecer.
Por quê?
Cerca de 90% da paralisação feita no ano passado era de empresário, 10% era de autônomo. O autônomo está jogando com o medo do governo, e o governo está como refém, com medo de que aconteça o que aconteceu no ano passado. Só que o autônomo está se aproveitando disso, esses “líderes” que estão se reunindo com o governo estão se aproveitando do medo do governo e ameaçando assim “porque se não atender aqui vai parar de novo”. Não vai acontecer.
O senhor pode garantir que eles não têm força para fazer uma greve igual à do ano passado?
De forma nenhuma. Nunca mais eles vão fazer isso. Greve igual à do ano passado, só quem consegue fazer são os empresários. Se no futuro, o empresário tiver interesse novamente, ele vai fazer. Isso é decorrência da política dos governos que passaram, desde lá atrás quando se deixou de apostar em outros sistemas de transporte. O governo deveria incentivar os outros modais, mas isso vai levar 10 ou 20 anos para acontecer, para chegar no ponto que precisa. O mercado está inchado de caminhões, na lei da oferta e da procura a balança caiu violentamente e existe caminhão em excesso no mercado.
O senhor é representante de autônomos e admite que quem dita os rumos de qualquer movimento são as empresas?
Em maio do ano passado, as empresas organizaram tudo. Tudo organizadinho, bonitinho, motoristas orientados no Brasil inteiro, principalmente do agronegócio. As empresas de transporte, que inclusive depois das manifestações estão respondendo por multa milionária, estão brigando na Justiça porque foram multadas. O que aconteceu em maio do ano passado não foi uma greve de caminhoneiros, como está sendo divulgado até hoje: foi um locaute de empresários. E os caminhoneiros, inclusive, se sentiram fortalecidos com aquilo. Os empresários não poderiam negociar e nem dizer que aquilo era um movimento deles. Quem é que foi convocado para poder fazer reunião com o governo? Foram exatamente os autônomos, mas desses autônomos grande parte deles não são autônomos. E você pode dar como certo: não existe a menor possibilidade de caminhoneiro fazer greve. O problema é que aquilo assustou o governo. Michel Temer iria cair do governo se ele não atendesse tudo aquilo ilegalmente, porque ele não pode tabelar frete, não poderia intervir na Petrobras, ele não poderia fazer nada. Mas ele fez porque ele sabia que ia ser derrubado pelos caminhoneiros. De lá pra cá, o que aconteceu: Bolsonaro foi candidato, fez contato conosco, nós – os autônomos – apoiamos o Bolsonaro. Ele ficou agradecido, no dia seguinte que foi eleito, agradeceu duas categorias: o agronegócio e os caminhoneiros. Os empresários deram um tiro no pé. Eles não imaginavam que quem se sentaria à mesa pelos autônomos fosse pedir, por exemplo, a tabela mínima de frete. Isso complicou a vida de todo mundo.
Mas um dos pontos sempre foi a exigência da tabela do frete. É o caminho para melhorar a situação dos motoristas?
Não, não é viável. Em primeiro lugar, a Constituição não permite que haja tabelamento de frete. Em segundo lugar, não tem como o embarcador de carga cumprir tabela porque ele determina o valor do frete. Para você ter uma ideia, no agronegócio, existem casos de exportação em que o embarcador... O agronegócio tem um lucro maior no frete do que no próprio produto dele, porque bota o frete como R$ 40 a tonelada e paga R$ 5 para o caminhoneiro. O governo, pela Constituição, não pode falar nada. O Brasil é um país empresarial. Não se cumpre a tabela de frete. O único lugar em que está funcionando a tabela de frete é por exemplo no eixo Rio-São Paulo, onde o frete sempre foi alto. O frete mínimo é menor do que o frete que é praticado. Então, está funcionando em alguns locais, mas nas principais regiões do país tem lugar em que o frete mínimo aumentou a tabela que é aplicada no mercado em mais de 100%. O caso do retorno, por exemplo, do Nordeste para o Sudeste: o frete daqui para lá é R$ 20 a tonelada. De lá para cá, é R$ 7. Então como é que pode? Esse é o chamado frete retorno. Não existe esse negócio de frete mínimo, o pessoal não está cumprindo.
Mas a ANTT diz que tem fiscalizado o cumprimento da tabela.
Em raríssimos casos a ANTT está aplicando multas e ninguém está pagando, estão entrando na Justiça. Vão acabar ganhando.
Quantos caminhões têm sobrando hoje no mercado?
Eu diria que uma diferença enorme, chegando ao dobro de veículos para a demanda que o setor exige. Tem muito caminhão parado.
Como explicar o desequilíbrio?
É o excesso de veículos no mercado. Uma das razões foi o incentivo à compra de veículos nos últimos anos.
Em 1999, quando houve uma greve de cinco dias, as pautas eram o preço do diesel, a segurança do caminhoneiro, a tabela do frete. São as mesmas pautas de agora. Por quê?
É a mesma coisa, com raras diferenças.
E por que não houve evolução dessa pauta?
Aquela greve só adiantou para começar a dar o mínimo de organização aos caminhoneiros brasileiros. Eu aprendi ao longo dos anos que caminhoneiro não quer nem saber de entidade sindical. Caminhoneiro não acredita em sindicato.
Por que não conseguem organizar lideranças?
Esses que estão se dizendo líderes, com raras exceções, se intitularam de lideranças em maio do ano passado porque os empresários não puderam fazer isso. Quem era a liderança eram os empresários. Eles não puderam fazer isso porque caracterizaria locaute. Eles foram a Brasília, se reuniram com a confederação e se apresentaram ao governo como se fossem os líderes dos caminhoneiros. Nem eram dos autônomos, diziam-se líderes dos caminhoneiros. O governo sentou na mesa com esse pessoal, uns 10, e lá embaixo, na entrada do Palácio do Planalto, tinha uns 20. Todos se diziam líderes da paralisação. Se aproveitaram. Como o governo estava assustado, foi atendido tudo que estava ali.