A partir de segunda-feira (6), o Brasil entra em mais uma campanha nacional de vacinação com o desafio de reverter uma estatística preocupante. Em junho, dados do Ministério da Saúde mostraram que a cobertura vacinal contra doenças como paralisia infantil atingiu o menor patamar dos últimos 16 anos. Ao mesmo tempo, eclodiram em pelo menos três Estados surtos de sarampo, doença erradicada em 2016.
A surpresa dos resultados é ainda maior porque o Programa Nacional de Imunizações do Brasil já foi reconhecido mundialmente como um dos mais eficientes planos de vacinação em massa da população. Ministro da Saúde entre 2007 e 2011, o médico sanitarista José Gomes Temporão faz um alerta:
— O risco de retorno de algumas doenças controladas é muito preocupante. É preciso recuperar o tempo perdido.
Na entrevista a seguir, Temporão faz análise sobre os motivos que levaram à queda na cobertura de imunizações no Brasil.
O que explica a queda nos índices de imunização contra doenças que já haviam sido erradicadas?
O programa de imunizações do Brasil é uma referência mundial. O país consegue vacinar, em um único dia, mais de 10 milhões de crianças. Isso é incrível. Começou em 1983, quando foi criado esse programa, e as conquistas são muito impressionantes. O Brasil erradicou todas as doenças preveníveis por vacinação com benefício inestimável para a população, como redução da mortalidade e economia com tratamento de saúde.
Com isso, a pesquisa também se desenvolveu no Brasil.
Sim, a indústria brasileira de produção de vacinas passou a ser uma referência. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz, da qual é pesquisador) e o Butantã, de São Paulo, são dois dos maiores produtores mundiais de vacinas. O que começou a acontecer agora é o aparecimento de surtos localizados de sarampo e outras doenças que haviam sido controladas.
Como se explica o ressurgimento?
A primeira é que temos uma nova geração de pais que não conviveram com as doenças de antigamente. O sucesso do programa cria algumas fragilidades, ou seja, como as doenças desapareceram, as pessoas acham que não precisa se vacinar. O segundo é um possível reflexo de fenômenos internacionais, conhecidos como movimentos antivacina. Existem algumas organizações não governamentais americanas que disseminam notícias falsas sobre supostos malefícios do efeito das vacinas. Essas afirmações não têm base científica. Esse movimento está mais restrito a uma classe média alta que conjuga essa atitude com uma série de outros hábitos alimentares e mudança de padrão de vida.
Não é uma irresponsabilidade?
Total, porque, quando vacino o meu filho, estou protegendo toda uma comunidade. A consciência é muito importante. Mas diria que os movimentos antivacinação têm um papel menor dentro do que está acontecendo no Brasil. A meu ver, dois fenômenos estão sendo responsáveis pelo retorno dessas doenças. Nos últimos quatro anos, houve redução importante de esforço do governo federal em comunicação e informação. E isso é muito importante. Quando estava à frente do Ministério da Saúde, eu mesmo gravava depoimentos para exibir em rede nacional convocando a população para que se dirigisse aos postos de saúde para proteger a si, a família e a comunidade. E isso se perdeu.
O senhor acha que é decisão política ou trata-se de descuido mesmo?
É uma conjugação de corte de recursos financeiros, causado pela situação econômica, com certo descaso, perda de prioridade. Infelizmente, o Ministério da Saúde está sendo conduzido por pessoas que não entendem muito de saúde pública. Claramente, houve perda de qualidade da gestão federal. O outro fenômeno sobre o qual quero chamar atenção é o impacto sobre o Programa Saúde da Família, que é o maior programa de atenção primária do mundo, cobre mais de 120 milhões de pessoas. É um programa que promove a saúde básica, tem o trabalho dos agentes que visitam as pessoas em casa, o trabalho dos postos e policlínicas. E tudo isso vem sendo impactado nos últimos anos por cortes na saúde e mudanças no padrão de funcionamento.
Infelizmente, o Ministério da Saúde está sendo conduzido por pessoas que não entendem muito de saúde pública.
Que mudanças foram mais sentidas?
No trabalho do médico, por exemplo, que era obrigado a trabalhar 40 horas por semana. Essa escala foi flexibilizada, e o médico pode dar plantão em outro lugar. O número de agentes comunitários foi reduzido e houve, sim, corte de despesas. A emenda 95, que congelou os gastos públicos pelos próximos 20 anos, está mostrando seus primeiros efeitos agora, que são o retorno de doenças controladas e precarização do atendimento à saúde. Fico chocado em pensar que estamos sob o risco de volta da poliomielite, cujo último caso foi nos anos 1990. Essa combinação de mudanças no Programa de Saúde da Família, falta de comunicação e redução dos gastos em saúde foram determinantes para esse fenômeno. No ano passado, o SUS perdeu R$ 692 milhões.
Das doenças já controladas, há alguma que mais preocupa diante da redução de vacinações no país?
O sarampo é uma delas porque dispõe de vacina altamente eficaz, com proteção total. É uma doença que pode causar, em crianças e adultos, quadros infecciosos, que afetam o aparelho respiratório e são potencialmente graves. Existe o risco do retorno da rubéola, que foi controlada no início dos anos 2000, quando fizemos campanha gigantesca de imunização. A síndrome da rubéola congênita pode resultar em série de má formações, como surdez, por exemplo. E, claro, a poliomielite, cuja vacina é hipereficaz e que, nos anos 1960 e 1970, deixou inúmeras crianças com sequelas como perda de movimentos, paralisa mesmo. Agora é o momento de falar e divulgar o máximo possível, de dar destaque para a importância de manter a caderneta de vacinação das crianças em dia.
O diagnóstico sobre a redução da amplitude da vacinação o senhor tem. O que precisa ser feito para recuperar os índices de vacinação?
De um lado, temos um fator positivo, que é acúmulo de todos esses anos de mobilização em torno da vacinação. Agora, para reverter o quadro de queda no interesse pela vacina, é preciso que o governo federal, com apoio de Estados e municípios, volte a investir em mobilização, em campanhas e em orientação. Mas chamo atenção também para o que está acontecendo em relação ao financiamento da saúde. Vacinar 10 milhões de pessoas em único dia tem custo, e é muito alto. Precisa levar vacinas a todos os cantos do Brasil. O país tem de resgatar a tradição que tinha de ser um exemplo em vacinação e rever essa coisa esdrúxula de impor um teto para gastos em saúde nos próximos 20 anos.
A saúde, então, deveria ficar de fora do teto dos gastos?
Com certeza. A população brasileira está envelhecendo rapidamente. Estamos fazendo transição demográfica muito mais rápida, por exemplo, do que a França. O que significa isso? Mais tempo de vida, mais doenças crônicas como diabete e hipertensão, e mais câncer. E isso exige mais investimento em tecnologia, mais medicamentos, mais recursos médicos. Então, é loucura fixar teto de gastos para a saúde no momento em que a população mais precisa.
Serviço:
A Campanha Nacional de Vacinação começa segunda-feira (6) e vai até o dia 31 de agosto. O Dia D será em 18 de agosto, quando postos de saúde em todo o país estarão abertos. A meta é imunizar 11 milhões de crianças de um até cinco anos.