Apesar de proibida no Brasil há quase dois anos, a exploração do composto fosfoetanolamina, usada na chamada "pílula do câncer", ainda rende debates e esclarecimentos pela comunidade científica. A insistência dos laboratórios em oferecer a substância com a classificação de suplemento alimentar, como mostrado por GaúchaZH no início de janeiro, exige de médicos vigilância sobre pacientes seduzidos por promessas de cura do câncer. Testes encomendados pela reportagem mostraram que o produto com o nome "fosfo" sequer continha a fosfoetanolamina.
– É charlatanismo – diz um dos mais renomados oncologistas do Rio Grande do Sul, Sérgio Roithmann, coordenador do Centro de Oncologia do Hospital Moinhos de Vento.
O que justifica a procura por fosfoetanolamina, apesar da total falta de evidência de cura?
O medo da morte. O desespero. É natural que pacientes procurem algo assim. Não só no Brasil. E não tem a ver com classe social ou nível intelectual. Há várias questões. As terapias espirituais, que podem ser de qualquer religião, por exemplo. Importante é entender se o paciente está sendo explorado ou não.
Como se trata alguém fragilizado mas informado sobre tratamentos alternativos?
Quando estão com medo, as pessoas ficam agressivas. Muitas brigas em hospitais são com pacientes muito assustados. Alguém assustado está suscetível a absurdos. Se tu compreendes isso, entendes o fenômeno da fosfoetanolamina. Entre alguém que, de boa-fé, oferece um tratamento médico e alguém que propõe um golpe, há uma fronteira perigosa, e nós (médicos) temos que impedir isso. Há duas coisas chave na relação médico-paciente: não mentir e não tirar a esperança.
Minimizar o problema é mentir?
Sim. Maximizar, assustando sem necessidade, também. Recomendável é dizer: olha, a situação é séria, mas vamos fazer o possível para controlar a doença, e depois vamos ver.
É curável? Em 2018, algumas doenças não são. Mas quem sabe em 2021?
Os pacientes ficam agradecidos quando tu não tiras a esperança, e, mais importante até, não mentes.
A venda da "fosfo" é um golpe?
Pesquisadores das áreas de química e biologia da USP estudaram esse composto. Tentaram estabelecer uma base teórica para justificar que ele pudesse ser usado para tentar bloquear a proliferação de tumores. Isso foi testado, de forma precária. E não teve nenhum resultado mostrando o efeito antiproliferativo. No mundo todo, há vários compostos sendo estudados. A maioria morre na casca. O absurdo da fosfo é o que veio após os testes. De repente, do nada, o composto saiu do laboratório e virou uma pílula à venda. Essa droga não podia ter seguido esse curso, porque os resultados eram pobres. Quando isso aconteceu, acabou a ciência.
Mas por que o assunto, a partir daí, explodiu?
O mundo de hoje está propício para fenômenos assim. Houve políticos envolvidos com isso. O tema passou pelo Congresso, passou por decreto presidencial. Aí se entra num território delicado. Outra coisa são as redes sociais: a responsabilidade inexiste, correm soltas teorias conspiratórias do tipo "o comprimido só não vai para a frente porque a indústria farmacêutica não é a indústria da saúde, é indústria da doença". Isso pega quem tem medo.
Vender a fosfo é charlatanismo?
Não há outro nome para quem promete a cura do câncer.
É arriscado estimar o tempo de vida dos pacientes com câncer?
É uma armadilha. Pode haver uma média, mas, para uma pessoa, a média não vale. Na mão do charlatão, isso é ouro. Se tu decretas que a pessoa tem seis meses, ela vai procurar outra coisa. Então jamais dou tempo de vida para um paciente. A gente dá uma ideia de sobrevida quando o câncer é muito agressivo.
Porto Alegre já teve casos extraordinários?
Sim. Uma paciente minha chegou com um melanoma metastático. Fizemos uma quimioterapia na qual ela tinha 1% de chance de ter resposta. E, hoje, faz seis anos que ela não tem mais nada. Melanoma era o câncer mais agressivo. Com a imunoterapia – que é a ativação do sistema imunológico do paciente para atacar o tumor –, isso está mudando. Esse é o principal foco das pesquisas atuais.
Vai se chegar à cura definitiva?
Hoje em dia já é possível dizer que muitos cânceres têm cura. Tumores no pulmão, no pâncreas, na mama, linfomas – em muitos desses, se o tratamento é feito desde cedo, chega-se à cura. Mas ainda há um grande número de tumores não curáveis. O câncer ainda será a principal causa de morte da humanidade. Ainda é preciso entender por que está aumentando a incidência. Mas, nos próximos 10 anos, vamos aumentar muito a taxa de cura. As pesquisas avançam rapidamente.