O crescimento urbano desordenado de Porto Alegre, com a migração de comunidades sobre áreas sem uso e a ausência de políticas habitacionais, gerou um dos maiores desafios ao poder público. Existem, atualmente, entre 600 e 650 áreas de ocupação na Capital, segundo cálculos do promotor de Justiça de Habitação e de Ordem Urbanística, Cláudio Ari Mello, que estuda o assunto a fundo e está empenhado em mediar situações de conflito por moradia.
– Se estimarmos um número modesto de 400 pessoas por ocupação, temos cerca de 240 mil pessoas morando em áreas informais, ou seja, 15% da população de Porto Alegre.
Há uma política clara de habitação em Porto Alegre?
A única existente foi construir e distribuir unidades do Minha Casa, Minha Vida. As políticas habitacionais que existiam antes desapareceram. Há políticas marginais, como o aluguel social e o bônus moradia. Mas algo robusto, que enfrente a complexidade do problema, não existe em nenhum município do Rio Grande do Sul.
Quais são as consequências disso?
Acaba existindo um pensamento de que a única forma de conseguir moradia é pela ocupação. Isso mostra a falência das políticas públicas. E revela o desespero de quem não tem para onde ir. A ocupação não é melhor solução, porque essas pessoas vão morar em situação de indignidade, sem saber por quanto tempo e em que condições vão viver ali.
O Minha Casa, Minha Vida foi pensado também para ajudar construtoras num período de crise. Isso explica por que prédios foram construídos em regiões remotas, onde o terreno é mais barato.
O Minha Casa, Minha Vida não resolveu o problema. Onde ele falhou?
Desde o início, o programa se revelou insuficiente. O estoque de demanda por habitação popular ficou acumulado durante décadas. Precisaríamos de um programa de longo prazo. Além disso, o Minha Casa, Minha Vida não considerou efeitos colaterais importantes, como tirar as pessoas de onde elas moravam, torná-las vulneráveis ao tráfico de drogas, colocá-las para viver em prédios mal construídos, sem acesso a equipamentos urbanos, o que fez com que essas pessoas não ficassem muito tempo nos imóveis. Os moradores se mudam com frequência, passam adiante as unidades.
O programa foi pensado também para ajudar construtoras num período de crise. Isso explica por que prédios foram construídos em regiões remotas, onde o terreno é mais barato: o empreendimento tem um custo menor, o que aumenta o ganho das construtoras. Os empreendimentos foram levados para onde não há escola, posto de saúde, estradas adequadas, linhas de ônibus. O Minha Casa, Minha Vida não resolveu o problema da moradia, gerou outros problemas e, mais grave, permitiu que os municípios se eximissem da responsabilidade de protagonizar a construção de moradias.
Como se reverte isso diante da crise das prefeituras?
Os municípios precisam entender a necessidade de formular políticas habitacionais. Não uma só, mas várias políticas que enfrentem problemas diversos com instrumentos diferentes. Não é apenas distribuir as chaves. Há uma série de problemas decorrentes da falta de moradia.
Quais as lições do episódio da ocupação Lanceiros Negros, no centro de Porto Alegre?
O movimento tinha líderes bem articulados, com capacidade de explicar qual era o real problema deles às autoridades. Esses líderes conseguiram trazer para o debate a ausência de política habitacional. Essa foi uma das menores ocupações que havia em Porto Alegre, mas teve caráter simbólico porque colocou o problema na agenda política. Também ajuda a conscientizar que precisamos repensar a reintegração – que começa com o fim do preconceito contra os ocupantes; precisamos deixar de vê-los como criminosos que precisam ser removidos à força. Quem ocupa é quem precisa morar.
Todos têm esse perfil?
Há desvios em tudo, mas essa é a média. A prova disso é que as pessoas que saíram das ocupações no centro de Porto Alegre agora moram num abrigo onde chove dentro.
Por que não se vê a mesma mobilização em áreas como as ilhas do Guaíba, por exemplo, onde vivem mais de 20 mil pessoas?
Porque, nas ocupações do Centro, os movimentos são mais articulados, têm o apoio de intelectuais e universitários e ganham visibilidade, inclusive da imprensa. Faz falta um movimento mais articulado para representar as pessoas (das ocupações nas ilhas) e mostrar como elas vivem.
Como evitar o conflito nas operações de reintegração de posse?
Estamos todos aprendendo como fazer isso da melhor maneira possível. A reintegração do Hotel Açores (de onde foi retirada parte da Ocupação Lanceiros Negros) foi um exemplo, porque fizemos duas reuniões que anteciparam a forma da reintegração. A operação teve data e hora marcada, todos foram notificados e, nas audiências de preparação, discutiram-se todas as possibilidades para a saída.
No dia da desocupação, chegou-se com uma janela ampla para que tudo fosse feito sem o uso da força.