A primeira dúvida é de Clara B., que me escreve, como ela diz, da Ilha da Magia (espero que esteja se referindo a Florianópolis...): "Professor, numa de suas colunas sobre o Acordo Ortográfico encontrei uma palavra que me deixou intrigada. Lá pelas tantas o senhor escreve que "tirante os acentos, a grafia do Português é muito, mas muito mais simples que a do Inglês". Foi isso que estranhei: tirante? Desculpe a minha ignorância, mas sempre ouvi tirando. Faço parte de um clube de leitura e aproveitei para pôr este termo na roda, e todas concordaram comigo. Como sei que o senhor responde quando lhe escrevem, venho por meio desta pedir humildemente uma explicação que ilumine a mim e às minhas amigas".
Minha boa Clara B. — e suas amigas também! —, confesso que tenho uma certa fraqueza por variantes menos usadas de palavras conhecidas. Não é por ostentação, acredite, mas porque fazem bem ao meu ouvido e isso me dá prazer (lembra o título desta coluna?), e porque, além disso, ao usá-las, espero sinceramente estar contribuindo para manter viva a diversidade de um rico idioma como o nosso. Tirante (que não é aquele outro tirante, derivado de tira, que aparece nos arreios ou nos suspensórios) é palavra bem velhinha, usada inicialmente com o sentido de "aquilo que se aproxima de uma cor ou tonalidade", como usava o padre Bluteau, o decano de nossos dicionaristas: "Ametista: pedra preciosa da cor da púrpura, tirante a roxo").
Há pouco mais de um século, contudo, o termo passou a ser usado também com o sentido de "salvo, exceto", como podemos ver em Monteiro Lobato, ao falar de Péricles: "Tirante esse pequeno defeito, era um homem de grande beleza física, dessas que se aproximam da beleza olímpica". Não haveria erro em substituir o tirante dos dois exemplos acima, dizendo que a ametista é uma pedra preciosa da cor púrpura, que puxa para o roxo" e que Péricles, "tirando esse pequeno defeito", era um homem de grande beleza. Para textos dirigidos a leitores de primeira viagem, a preferência por palavras mais cotidianas é remédio recomendado, mas que deve ser usado com moderação, para não reduzir nosso léxico a algumas centenas de vocábulos básicos. Não podemos esquecer, Clara e amigas, que um dos grandes fascínios da leitura é justamente atiçar nossa curiosidade sobre termos que desconhecemos: enquanto um argentário jamais estará satisfeito com o dinheiro que já ganhou, um bom leitor jamais vai se contentar com as palavras que já domina.
A segunda dúvida é de um vizinho especial, menino de pouco mais de dez anos que sempre encontro com um livro embaixo do braço. Ele sabe quem sou. Já leu, por recomendação do avô, uma de minhas colunas, mas, como declara num tom compenetrado, não se interessou porque achou muito "científica" — o que quer que isso signifique. Na semana passada, contudo, nós nos encontramos ao passear os respectivos cachorros, e ele sucumbiu: "Eu queria saber a diferença entre uma fenda e uma fresta. Meu avô me mandou olhar no dicionário mas não adiantou nada, porque ali diz que uma fresta pode ser uma fenda e que uma fenda pode ser uma fresta". Como ensinar é minha segunda natureza, é claro que não respondi na hora.
Prometi que responderia nesta quinta-feira; ele que lesse o jornal − exatamente o que espero que ele, nesta hora, esteja fazendo ou já tenha feito. A fresta e a fenda, caro vizinho (não sei seu nome, mas o cachorro se chama Toby), têm uma diferença fundamental. A fresta deixa passar ar e luz, mas a fenda também, em muitos casos. O que as distingue é outra coisa: a fenda é uma abertura surgida num corpo uno, íntegro; ela pode atravessá-lo ou não; a fresta, por sua vez, é uma abertura entre dois corpos. Abre-se uma fenda num muro, numa parede de alvenaria, num dente (quando então é sinônimo de rachadura); também pode ser no solo (nos terremotos), na crosta terreste, numa saia ou num vestido. A fresta pode ser entre a janela e a esquadria, entre dois dentes, entre a porta e o marco, entre as tábuas de uma casa de madeira (aqui no Sul temos o expressivo verbo frestear, com o sentido de "espreitar, olhar às escondidas"). Para deixar bem claro, eis aqui dois exemplos de Machado de Assis, um autor que um dia, tenho certeza, vai entrar para sempre na tua vida de leitor. Compara "Teve uma idéia audaciosa: empurrar devagarinho a porta e espiar pela fresta" com "O muro do fundo tinha uma larga fenda, por onde se via parte da chácara pertencente a uma casa da vizinhança. A fenda era recente; e Guiomar acostumara-se a ir espairecer ali os olhos, já sérios e pensativos".
Não poderia concluir sem compartilhar com meus prezados leitores uma conquista de que muito me orgulho: no dia 31 deste mês de agosto, no Rio de Janeiro, tomo posse, como sócio correspondente, na Academia Brasileira de Filologia.