“Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro pra fora, outra que olha de fora para dentro.” A frase está no conto O Espelho (1882), de Machado de Assis. O personagem, talvez vocês se lembrem, é um jovem alferes que se embriaga com a “alma exterior” que a nova função lhe confere, ou seja, a imagem de distinção que a farda projeta. No sentido inverso, sua alma de dentro parece encolher, até o ponto em que o rapaz só consegue ver a si mesmo no espelho, com nitidez, quando está fardado: “O alferes eliminou o homem”.
Oitenta anos depois, outro conto intitulado O Espelho (1962), sobre outro jovem que perde a capacidade de ver sua própria imagem. Na história de Guimarães Rosa, o personagem se espanta com a discrepância entre o rosto externo, projetado no espelho, e uma “vera forma” que ele passa então a perseguir. Procura tanto que se perde completamente: o espelho já não reflete imagem nenhuma. Reduzido à “total desfigura”, ele se pergunta: “Não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma?”.
Entre os dois contos brasileiros, um romance italiano. A História de Um, Nenhum e Cem Mil (1926), de Luigi Pirandello, também começa diante de um espelho – e, à certa altura, por coincidência (imagino), fala de um “Deus de dentro” (a fé íntima) e de um “Deus de fora” (a Igreja). O jovem Vitangelo Moscarda está examinando o próprio rosto quando sua mulher observa que ele tem o nariz um pouco caído para a direita, detalhe que ele mesmo nunca havia notado. O incidente banal é suficiente para detonar uma crise existencial de grandes proporções. Quem afinal ele é? A pessoa que sempre pensou ser ou a que os outros veem? E se cada pessoa que ele conhece o enxerga de uma forma diferente, quantas versões dele existem? E qual delas seria a verdadeira?
Escondida em um filme aparentemente despretensioso, Assassino por Acaso, de Richard Linklater, a resposta é que talvez não exista mesmo uma versão fixa daquilo que consideramos o nosso eu mais verdadeiro. A partir de uma história divertida, baseada no caso real de um homem que se fazia passar por matador de aluguel para prender pessoas interessadas em eliminar seus desafetos, Linklater reflete sobre a construção da personalidade e a noção de identidade. Resumo da ópera: se o universo não é fixo, você também não é. Apenas tente ser o que gostaria de ser – e se esforce para dar certo.