Quando um país dá uma guinada brusca rumo à teocracia (aquele regime em que só vale a crença de quem já está no poder), mulheres e crianças pobres são as primeiras vítimas. Isso porque oprimir a população feminina é o primeiro mandamento do manual básico do fanático religioso. Além de acalentar a misoginia ancestral que corre em águas não tão profundas, a tática sinaliza virtude avançando sobre a liberdade de quem não está fazendo as leis - ou carregando as armas.
Parece uma realidade distante de nós, uma praga que só prospera em sociedades atrasadas, onde até mesmo o conteúdo dos livros sagrados é distorcido para justificar leis cada vez mais restritivas e excludentes. Bem-vindos a 2024, meus amigos. Com o avanço da extrema-direita na Europa e nos EUA, a vanguarda do atraso virou benchmarking. E nada faz brilhar mais os olhinhos do político de extrema-direita do que tirar da cartola uma boa campanha contra o aborto. Aconteceu nos EUA, em 2022, com a reversão da decisão Roe x Wade. Na Europa, na semana passada, durante a cúpula do G7, a primeira-ministra de direita da Itália, Giorgia Meloni, tentou excluir a defesa do aborto “legal e seguro” do documento final da reunião. Não deve dar em nada, mas Meloni se cacifa na direitosfera.
E aí chegamos ao Brasil. Como invocar o bicho-papão no país que já tem uma das legislações mais atrasadas do mundo em relação ao assunto? Criando um projeto de lei que piora o que já é ruim, dificultando o aborto nos três casos em que é legal (risco de vida para a mãe, estupro e feto anencefálico) e equiparando as penas de quem aborta às de quem comete homicídio. As consequências, se um projeto como esse fosse aprovado, seriam devastadoras, principalmente para as milhares de meninas de 10 a 14 anos estupradas todos os anos no Brasil. Meninas que demoram a descobrir que estão grávidas. Não por acaso, o projeto ficou conhecido como PL do Estuprador: em caso de estupro, puna-se a vítima.
A votação da “urgência”, aprovada em 23 segundos, dá um novo sentido ao termo. A pressa da bancada evangélica, na verdade, era uma resposta abrutalhada a uma discussão em curso no STF sobre assistolia fetal, procedimento recomendado pela Organização Mundial de Saúde para interromper a gestação depois da vigésima semana que o Conselho Federal de Medicina, vejam só, quer proibir - mesmo nos casos em que o aborto é legal. Resta saber se o presidente da Câmara pautou a votação porque considerava a questão “urgente” ou porque está preocupado com o próprio futuro político. (Dúvida cruel essa.)
Acreditem no que quiserem as senhoras e senhores de Santana, mas Deus não tem nada a ver com isso. É só o bom e velho oportunismo político, tão nosso conhecido, soprando para o lado da extrema-direita no momento - e usando a vida de mulheres e crianças de verdade como bucha de canhão.