A raiva é a emoção que vai mais rápido do zero ao cem. Gostando ou não, somos descendentes de todos os esquentadinhos que avançaram sem medo sobre o mané que estava tentando roubar seu bife ou perturbar algum membro da sua prole. Parou para pensar melhor antes de reagir, foi-se o bife. Conclusão: aquela pessoa que nunca levanta a voz, não sabe o que é uma Maracugina e não se exalta nem quando fica sem água e luz em casa por mais de dois dias é um mutante da espécie – ou simplesmente alguém que aprendeu a se controlar.
A série Treta (o título original, Beef, não vem do bife imemorial mencionado acima, mas de uma gíria do inglês que eu traduziria por “pinimba”, só para tirar o pó de uma palavra que anda esquecida) mostra o que pode acontecer quando pessoas aparentemente sensatas são dominadas por impulsos primitivos. Disponível na Netflix, a série merece todos os prêmios que ganhou no Globo de Ouro e no Emmy. Se tem uma emoção que estamos precisando entender (e controlar), é a raiva – remota e presencial.
Tudo começa, claro, com uma briga de trânsito. Um incidente na saída de um estacionamento lança um homem e uma mulher que nunca tinham se visto antes em um estado de confronto permanente. O jogo de gato e rato vai se tornando cada vez mais caótico e perigoso, para ambos, sem que haja um lado pelo qual nos sentimos mais inclinados a torcer.
Fiquei imaginando como seria uma série sobre descontrole emocional que tivesse como pano de fundo uma avenida movimentada de uma grande cidade brasileira. Tipos surtados para servir de modelo para os personagens não faltariam. Sempre tem aquele motorista que buzina, com ou sem motivo, como uma criança que chora no supermercado quando a mãe não compra o doce que ela queria. Tem o que grita palavrões na janela, o que faz gestos obscenos e aquele que dirige como se tivesse raiva do mundo – e mais ainda dos motoristas em volta. Haja Maracugina.
Ninguém precisa visitar um museu de história natural para topar com resquícios do homem das cavernas na maneira como nos comportamos em momentos de tensão ou frustração. (O ogro que habita em mim saúda o ogro que habita em você.) Os personagens de Treta são pessoas mais ou menos comuns, até deixarem de ser. A torcida não é para que façam as pazes e virem amigos de infância, mas para que sejam razoáveis e esfriem a cabeça, exatamente o que parece cada vez mais difícil – e não só para eles.
Quando a raiva se torna o eixo em torno do qual todas as outras emoções orbitam, o conflito pelo conflito é muito mais saboroso do que qualquer bife em disputa.