Lembro exatamente da primeira vez em que ouvi um discurso antivacina. Onde: pousada bucólica no interior do Rio Grande do Sul. Quando: no tempo em que fake news eram conhecidas apenas como "boatos".
A dona da pousada onde eu estava hospedada, uma ex-hippie que até então tinha me parecido perfeitamente paz-e-amor, exaltou-se tentando me convencer de que vacinas faziam mal. Tratei de continuar ouvindo com aquela cara de pastel que costumo adotar quando não quero discutir nem passar a impressão de que estou concordando. Mas fiquei com a pulga atrás da orelha. De onde vinha aquele nonsense todo? Mais tarde, descobri que não era um caso isolado. Um estudo fajuto, já fartamente desmentido, associando vacinas ao autismo, tinha dado origem ao tal "movimento antivacina" no final dos anos 1990. Coisa de gringo maluco, pensei, aqui não pega. Pegou.
Uma pesquisa publicada na semana passada na revista científica The Lancet mapeou o índice de confiança nas imunizações ao redor do mundo. Foram ouvidas 284 mil pessoas em 149 países. No Brasil, entre 2015 e 2019, a confiança na eficácia da vacinação desabou de 76% para 56%. Fake news, instabilidade política e extremismo religioso são apontados como os principais fatores que têm impactado negativamente as campanhas de vacinação. As consequências mais imediatas desses números também vieram a público na última semana: pela primeira vez, em quase 20 anos, o Brasil não atingiu a meta para nenhuma das principais vacinas indicadas para crianças de até um ano.
O curioso nesse movimento que coloca sob suspeita uma das maiores conquistas científicas do século 20 é a exótica coalizão que parece ter se estabelecido entre gente que defende um estilo de vida alternativo e antimaterialista – ex-hippies como aquela dona de pousada antivax – e a extrema direita "vamos asfaltar a Amazônia enquanto espalhamos fake news". Nos Estados Unidos, essa aliança heterodoxa tem surgido também entre apoiadores da QAnon, a mais escalafobética de todas as teorias conspiratórias já inventadas.
Duas tribos que pareciam não ter nada em comum descobriram, enfim, sua afinidade: o ódio ao "sistema", seja lá o que isso signifique. Um dos poucos casos em que um acordo entre polos opostos pode ser uma péssima notícia.