Todos os tipos de poluição têm origem na dificuldade de reconhecer até onde sua liberdade pode ir antes de invadir o espaço alheio. A poluição do ar, por exemplo. Durante muito tempo, foi considerado normal jogar fumaça tóxica na atmosfera como se não houvesse amanhã. Nunca foi bem visto jogar lixo na calçada na frente de casa ou na esquina mais próxima, mas, por algum motivo, o lixo anônimo de uma indústria saía de esgotos e chaminés com a inocência de borboletas flanando no bosque em uma manhã de primavera.
Foi preciso que alguns chatonildos começassem a se recusar a respirar produtos químicos em doses industriais para que surgissem as leis que regulam, ou tentam regular, os subprodutos que vão parar na atmosfera. O mesmo vale para dejetos que são jogados nos rios, nos mares, nas matas – e, em situações extremas como Mariana, dentro daquilo que um dia foi a casa de alguém. Em muitos lugares, ainda vigora o popular “se colar, colou”. E, mesmo não colando mais, continua-se a despejar lixo no ar, na água, na comida. Como se não houvesse amanhã – e, se continuarmos assim, não vai haver mesmo.
No plano miudinho da vida cotidiana, existem milhões de situações em que a dificuldade de respeitar o espaço alheio nos transforma em usinas bípedes de poluição do ambiente comum. Uma das mais disseminadas até pouco tempo atrás – fumar em locais fechados – foi disciplinada após décadas de consumo involuntário de fumaça. Os fumantes acreditavam genuinamente que estavam exercendo o direito inalienável de pensar apenas no próprio prazer. O mesmo vale para a poluição sonora. No Brasil, o ruído inconveniente ainda é confundido com “descontração”. Levar caixa de som para a beira da praia, falar alto no bar quando um artista está se apresentando ou conversar no meio do filme é tão natural hoje quanto era fumar no elevador nos anos 1960. (E se alguém por perto perder a paciência e pronunciar a ofensiva palavra “silêncio”, corre o risco de ser acusado de estar invadindo a liberdade alheia. Liberdade para importunar, no caso.)
Para que os direitos de quem come, respira, vê e ouve sejam respeitados, a cultura de uma sociedade (mais ou menos inclinada a distinguir o espaço público do espaço privado) deve combinarse às leis e à fiscalização, criando assim um ambiente de segurança, conforto e qualidade de vida para todos. No Brasil, nos faltam a cultura e a fiscalização, mas sobram leis para serem desrespeitadas. Ou sobravam. Estamos correndo o risco de perder até mesmo nossas leis pouco cumpridas.
CONTINUA-SE A DESPEJAR LIXO NO AR, NA ÁGUA E NA COMIDA COMO SE NÃO HOUVESSE AMANHÃ. E, SE CONTINUARMOS ASSIM, DAQUI A POUCO NÃO VAI HAVER MESMO.
Na última segunda-feira, a comissão que analisa novas regras para a regulação de agrotóxicos no país aprovou um relatório favorável à mudança na legislação. O relatório derruba restrições à aprovação e uso de agrotóxicos no Brasil, incluindo os mais perigosos, com características teratogênicas (causadoras de anomalias no útero e malformação no feto), cancerígenas ou mutagênicas. Na prática, a Anvisa e o Ibama perdem poder de fiscalização, enquanto o Ministério da Agricultura sai fortalecido. Para entrar em vigor, o texto precisa agora passar pela Câmara e pelo Senado.
O assunto envolve vários interesses, mas agrotóxicos nunca serão inofensivos como borboletas. Se não podemos contar que a preocupação com a saúde vá falar mais alto do que os interesses econômicos envolvidos nesse tipo de disputa, leis duras e fiscalização séria são a única chance que temos contra os que estão dispostos a temperar nossa salada com veneno sabor “se colar, colou”.