O que é uma pessoa sem suas obsessões? Uma das minhas é Ingmar Bergman. No tempo em que garimpar preciosidades em videolocadoras ainda não era tão obsoleto quanto passear de cabriolé, passei um ano frequentando o acervo da Espaço Vídeo em busca dos filmes do Bergman. Vi todos os que encontrei – um por semana, até o fim do estoque. Os amigos ficaram preocupados. Que efeito um ano de dramas abissais, em sueco, muitos deles no mais soturno preto e branco, poderia ter sobre uma alma impressionável? Nas outras não sei, mas na minha o efeito foi esse: uma vertigem estética e existencial que se tornou uma obsessão, uma sublime obsessão.
Bergman não é mesmo do tipo cinema-antes-da-pizza. Alguns filmes são intrincados, como Persona, ou melancólicos, como Morangos Silvestres, outros terrivelmente deprimentes, como Gritos e Sussurros (o meu preferido, aliás). Contrariando o senso comum, o que vibra na filmografia do diretor não é o desencanto ou o niilismo, mas a celebração da vida. Bergman mostra a aventura humana em toda a sua complexidade – casamentos em crise, famílias disfuncionais, doenças, neuroses incuráveis... –, sem esquecer que a beleza e o sublime também fazem parte dessa jornada. Não por acaso, a imagem mais emblemática de toda sua filmografia é a do cavaleiro jogando xadrez com a morte em O Sétimo Selo. Cada filme de Bergman, a sua maneira, sugere que driblar a finitude não é apenas sobreviver, mas forjar uma razão para viver.
Em 2018, os cem anos de Bergman serão lembrados no mundo todo – com sorte, em Porto Alegre também. Abro os trabalhos um pouco antes porque lembrei dele assistindo aos novos episódios de Black Mirror. A série mostra um futuro povoado por máquinas e pessoas que não são exatamente como as que conhecemos, mas quase. Um dos melhores capítulos desta temporada, Black Museum, volta a abordar a ideia de vida depois da morte, desde o ponto de vista de um mundo em que a tecnologia parece ser capaz de desafiar todas as limitações humanas – inclusive a maior delas.
Não é ficção científica supor que, neste instante, cérebros e dólares de Silicon Valley estão empenhados em empurrar para ainda mais longe o confronto final da nossa espécie com a morte – tema que Black Mirror já explorou em mais de um episódio. Imaginar uma subjetividade capaz de sobreviver fora do corpo ou um corpo capaz de tornar-se menos suscetível às leis da natureza talvez seja uma versão moderna do eterno xadrez com a morte. O certo é que, na remota hipótese de um dia derrotarmos esse adversário, já não seríamos os mesmos jogadores, mas outro tipo de espécie.