Não há como esquecer o 30 de julho de 2007. Para um jornalista cultural cuja formação deve quase tudo aos grandes filmes, a jornada de trabalho oscilou da melancolia à incredulidade: depois de passar o dia assimilando a morte de Ingmar Bergman e escrevendo sobre os filmes do sueco, veio à noite a notícia de que Michelangelo Antonioni também nos deixava.
O que o desaparecimento em menos de 24 horas de dois dos maiores cineastas de todos os tempos poderia significar, para além da infeliz coincidência? Convidado a escrever sobre os mestres no extinto caderno Cultura de Zero Hora, ruminei ideias com o travo amargo do pessimismo que a aziaga efeméride instilava: o cinema – pelo menos aquele que aprendi a amar – agonizava.
Passados 10 anos, constato aliviado que os prognósticos sobre uma suposta morte do cinema foram precipitados – de minha parte, pelo menos, o exagero era intencionalmente dramático. Porém, diferentemente do colega Daniel Feix, que escreve sobre o legado de Bergman e Antonioni, não consigo ter hoje uma visão mais otimista da situação. Conforme argumentei então há uma década – e como também sustenta Feix –, o cinema continua produzindo filmes e realizadores instigantes em quantidade, que mantêm uma produção constante de alta qualidade artística e cultural. O ponto não é exatamente esse. O que eu lamentava então – e que hoje me parece ainda mais grave – é o desinteresse do grande público por esse tipo de cinema empenhado.
"Tanto o italiano Antonioni quanto o sueco Bergman iniciaram suas carreiras nos anos 1940, firmando-se artisticamente na década seguinte – quando o chamado cinema de autor expandiu-se para além de uma restrita elite intelectual cinéfila e ganhou a atenção de uma fatia maior do público. O diretor – acumulando muitas vezes a função de roteirista – cresceu em prestígio popular, tornando-se o centro da obra e dividindo com astros e estrelas o interesse das plateias. Assim, tornou-se comum ir ao cinema, independentemente do elenco ou da história, para assistir a 'Um filme de' – letreiro que podia aparecer na tela antes de qualquer outra imagem. Um filme de Antonioni, Bergman, Kurosawa, Fellini, Godard, Buñuel, Truffaut, Visconti, Scorsese, Rossellini, Kubrick, Fassbinder, Bertolucci, Herzog, Saura, Wajda, Oshima, Lynch, Wenders. Não que haja escassez de pensadores atrás das câmeras atualmente: do berço da burguesia cultivada da Europa ocidental, os filmes autorais estão presentes agora em todas as cinematografias do mundo, realizados por diretores como o iraniano Abbas Kiarostami, o tailandês Apichatpong Weerasethakul, o grego Theo Angelopoulos, o mexicano Arturo Ripstein, o malaio Tsai Ming-liang, o russo Aleksandr Sokurov, os belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne, o bósnio Emir Kusturica, o brasileiro Júlio Bressane. O que tem minguado nos últimos tempos é o interesse dos espectadores por esse cinema que coloca a reflexão antes do entretenimento."
O trecho acima entre aspas foi retirado daquele artigo para o Cultura. A lembrança do dia fatídico em que a morte deu xeque-mate simultaneamente em Bergman e Antonioni pode não despertar mais visões apocalípticas. Mas ficará marcado para sempre como símbolo do crepúsculo dos deuses do cinema, que nos faziam correr para as salas escuras conclamados pelo irresistível apelo:
"Um filme de...".