A família tornou-se o espaço sagrado, por excelência, da nossa época. Religião, pátria, ideologias e mesmo o trabalho costumavam dar sentido e propósito a uma existência. Hoje, tudo isso nos parece distante, abstrato, volátil.
Sagrado é tudo aquilo pelo que seríamos capazes de sacrificar nossas próprias vidas. Se andam escasseando voluntários para morrer pela pátria (qualquer pátria), por ideias ou mesmo pela fé, basta dar uma volta por uma comunidade violenta de Porto Alegre para encontrar mães, pais e avós dispostos a proteger suas crianças de uma bala perdida com o próprio corpo se necessário. (A tese de que a família é a única entidade realmente sagrada na sociedade moderna foi desenvolvida pelo filósofo francês Luc Ferry no livro Famílias, Amo Vocês.)
Se é esperado que os pais façam tudo pelo melhor interesse dos filhos, fica implícito que a palavra deles deve ser a última em todos os aspectos importantes que envolvem suas vidas. Em tese. Toda vez que um pai decide educar o filho em casa ou quando abre mão de um determinado tratamento médico por motivos religiosos, as escolhas privadas de uma família podem ser colocadas em questão. Muitas famílias, abastecidas por informações parciais ou simplesmente equivocadas, têm decidido, por exemplo, não vacinar os filhos. Trata-se de um enorme problema de saúde pública, na medida em que a decisão de uma única família não atinge apenas uma criança, mas todas as outras em volta que podem vir a ser contaminadas.
Nas últimas semanas, o mundo acompanhou o drama de uma família britânica que lutava para continuar buscando tratamento para o filho, portador de uma rara doença genética, contrariando a opinião dos médicos – que consideravam que o prolongamento da vida do bebê apenas traria mais sofrimento a ele. Na segunda-feira, os pais do bebê Charlie Gard finalmente desistiram da luta judicial.
Tudo nos comove nessa história: a dor dos pais, o sofrimento do bebê, a dificuldade de encontrar uma solução conciliatória – e o fato de que nada disso impediu que diferentes interesses políticos, religiosos e midiáticos tentassem tirar sua casquinha do episódio. Em meio a toda essa dor, o que o caso do bebê Gard nos ensina é que o sentimento dos pais, por mais legítimo que seja, não está acima do bem e do mal. O amor pode ser infalível, mas a paternidade não cria pessoas infalíveis, mesmo quando elas genuinamente acreditam estar fazendo o melhor para os seus filhos.