Para a maioria das pessoas, tradições familiares costumam estar associadas a festas religiosas – Natal e Páscoa em especial, para os cristãos. Como o Natal compete com a enorme carga de compromissos de fim de ano, a Páscoa acaba oferecendo mais oportunidades para uma celebração familiar, religiosa ou não, mais plena. Vejo amigos de hábitos solidamente seculares pintando ovinhos, decorando a casa e preparando brincadeiras para as crianças no domingo de manhã. Não apenas porque "todo mundo faz" ou "todo mundo sempre fez", mas pela sensação de aconchego que esses rituais que fogem à lógica prática do dia a dia proporcionam para adultos e crianças.
É curioso o caminho que rituais e tradições percorrem ao longo do tempo dentro de uma família. Alguns atravessam gerações, sobrevivendo praticamente inalterados à passagem do tempo e à miscigenação com outras famílias. Outros são recriados, adaptados aos novos tempos, reinventados pelos mais jovens, recombinados com outros hábitos. E há os que se perdem – de uma vez só, por decisão consciente de quem decide cortar laços com tradições que já não fazem sentido, ou aos poucos, por falta de energia para retransmitir experiências significativas da infância para as gerações mais novas. Muita gente, porém, tem percorrido o caminho inverso, retomando contato com o passado em busca das raízes e da sensação de pertencimento que fazem falta para além da vivência propriamente religiosa.
Não venho de uma família muito ligada a rituais, mas na Sexta-feira Santa pelo menos uma coisa era sagrada lá em casa: ninguém podia brigar. Sabíamos, eu e meus dois irmãos mais velhos, que falar alto e ouvir música não era muito santo perto da Páscoa, mas a única regra da qual nossa mãe não abria mão mesmo era a da trégua nas disputas mais acaloradas por algum brinquedo ou programa de TV. Como filha caçula e única menina, em geral servia apenas de plateia para as brigas dos mais velhos e portanto era fácil guardar o silêncio e a compenetração exigidos pelos adultos. Mesmo um pouco forçada, a paz da Sexta-feira Santa me caía bem. Como se aquele dia mundial da paz artificial fosse realmente especial e diferente de todos os outros.
Ainda assim, nunca me ocorreu, na vida adulta, que essa tradição já meio esquecida me fizesse falta. Até este ano. Em meio a tanto ruído e confusão, a ideia de uma sexta-feira reservada para o silêncio e a contrição nunca me pareceu tão apropriada – e sagrada.