Preta Gil,
O câncer pode ter voltado, mas saiba que não largamos a sua mão em nenhum momento. A permanência do afeto vai mandá-lo embora definitivamente. Palavras são curativas. Canções são curativas. A remissão irá acontecer.
Não será como imaginamos, mas ainda assim será como sonhamos. O sonho representa um objetivo a ser alcançado, não importa como, não importam o tempo e o espaço. É da nossa condição humana fantasiar as etapas, mas elas mudam conforme os desafios.
Mire ao topo da escada, é desgastante subir contando os degraus. Apenas suba. Escadarias de sonhos e de igrejas são sempre longas. É do alto que enxergamos os problemas menores.
Você já venceu uma batalha. Não se esqueça disso. Seu corpo vem aprendendo a se defender com a sua alma tão bonita, tão justa, tão paciente.
A reincidência costuma atingir 40% das pessoas com câncer primário. O milagre não é, como todos acreditam, de uma vez só. É parcelado, conquista a conquista, passo a passo, gesto a gesto de coragem.
Não é uma conversão mágica, não é uma transmudação imediata, requer uma confiança renovada a cada amanhecer.
Unicamente a família e os amigos mais próximos são capazes de testemunhar que os milagres desabrocham lentamente.
A convalescência é também uma arte, com ensaios sucessivos no quarto. Quantas músicas são repetidas no estúdio até a afinação se mostrar perfeita? É idêntico o processo, com a diferença de que, aqui e agora, você dá o seu melhor para sobreviver.
Eu entendo o seu desgosto em retomar as internações, os exames e as sessões. Novamente vestirá o avental, colocará a touquinha, calçará os protetores dos pés. Novamente não desfrutará de suas cores e de sua exuberância de ser. Novamente a náusea, a fadiga, a perda de cabelos, a queimação. Novamente o sumiço público de alguns dias, algumas semanas, na privacidade do combate.
A debilidade nos põe a pensar bobagens. Haverá noites em que pedirá desculpa por existir. Haverá noites em que o cansaço roubará a gratidão. Haverá noites em que a água doerá para descer na garganta. Haverá noites insuportáveis, eu sei, em que se dobrará na posição fetal, refugiada em sua concha de travesseiros.
É natural se desligar do desejo de comer, de ficar de pé, de conversar, de cantar. É necessário ânimo para conseguir raciocinar, para terminar uma ideia, para manter uma mínima continuidade nos diálogos. Não tem quem não se sinta esvaziado, sugado pela quimioterapia, posto ao extremo desumano dos seus limites para erradicar as células doentes. É como se morrêssemos para renascer. Ultrapassamos o nosso fim para retornar ao nosso início.
Há mais de um ano, você espera ansiosamente a notícia de estar curada. Nenhuma promessa foi jogada fora. Esperança acumulada vira fé. Já habita o seu coração uma força muito maior do que quando recebeu o diagnóstico.
Sua vontade de viver é o principal tratamento que existe, o mais precioso cuidado. Despeça-se da doença com a sua suavidade de furacão, com a sua tranquilidade de vulcão. Ela nada pode contra o seu amor.
Abraço,
Fabrício Carpinejar