Voltando do interior pela BR-290, testemunhei cenas terríveis de desamparo: acampamentos na beira da estrada, lonas montadas, tendas mal-ajambradas e gente pernoitando no carro para vigiar os seus terrenos em ruínas, secando a metros dali, na expectativa de que as áreas alagadas possam ser novamente habitáveis.
Os vãos dos viadutos estavam ocupados por móveis, postes serviam de varais, crianças dormiam em bacias.
Confesso que demorei a decifrar a natureza daquele assentamento. É imensa a nossa predisposição a apagar tudo o que aconteceu recentemente em nosso estado. Existe uma vontade de seguir em frente que nos faz não querer olhar para trás.
Mas aquelas pessoas não estavam no passado, ainda se encontravam no meu lado, no meu campo de visão, cortando o meu coração. Por mais que passasse por elas, permaneciam enquadradas no canto do meu retrovisor, no porta-retratos do meu retrovisor.
A princípio, pensei que fossem ambulantes vendendo água, esperando um engarrafamento para aparecer com isopor e promoções nas janelas, mas fui descobrindo o óbvio, caindo em mim: eram centenas de famílias da Vila Farrapos, das imediações de Eldorado, das ilhas e do bairro Humaitá, desalojadas pelo rio Guaíba.
Tratava-se de uma fila indiana de flagelados sem casa. Um cinturão de miséria de nosso desastre ambiental, o maior da história gaúcha, o maior da história brasileira.
São os nossos esquecidos da enchente, os nossos abandonados no asfalto. Enquanto estiverem lá, não superamos a tragédia. Ainda não saímos de maio.
Depois do que sofreram e perderam, de suas rotinas dizimadas pela tempestade e pela lama, não se sentem ameaçados pelos automóveis e caminhões correndo rente a seus improvisados loteamentos de plástico e de madeira. Não se importam com o barulho do rush e a fumaça dos carburadores.
Suas presenças nas vias movimentadas costumam ser entendidas como um protesto pelos motoristas, já que a vulnerabilidade das famílias acaba gerando congestionamento e lentidão nos horários de pico.
São moradores da região que resistiram a ir para abrigos, juntaram o pouco que sobrou de suas residências e se instalaram com seus bichos e um punhado de roupas às margens da BR, sob condições precárias, sem energia elétrica e sem banheiro.
Não estão pedindo carona, mas a sua residência de volta, a sua vida de volta.
Procuraram a parte mais alta e seca próxima de seus endereços, que calhou ser a BR-290.
Não são mendigos, mas trabalhadores. É uma indigência generalizada de nossos trabalhadores.
Não podemos deixar gaúchos nessa situação aflitiva, angustiada, indefinida, no acostamento de nossas rodovias, à margem de nossas existências. Eles não têm para onde ir, para onde retornar.
Há previsão de chuva para sábado. O que será deles? O que será de nós? Nossa paisagem continua sendo a desolação humana. Não é bem paisagem, é o nosso cotidiano cru e real.
É necessário que ocorram atropelamentos para as autoridades tomarem as devidas providências de acolhimento?