Nem passou um ano do falecimento de Pelé e o Santos caiu.
É como se o tricampeão da Libertadores tivesse perdido o seu poder, a sua imunidade mística, a proteção do manto do Rei, a inviolabilidade da lenda.
Tornou-se de repente mortal, comum, falível.
Agora só dois grandes times não jogaram a Série B: São Paulo e Flamengo, os únicos que não foram rebaixados (junto de Cuiabá, que veio do acesso).
Desde a derrota para o Palmeiras na Libertadores de 2021 e início da gestão de Andrés Rueda, Santos amargou escândalos, interinidade, crises, alternâncias e a troca de nove treinadores durante o período de dois anos. Não acertou a liderança.
Estava caminhando a passos largos para o precipício. Dependia somente de si na derradeira rodada e perdeu em casa para o Fortaleza. Sofreu três derrotas consecutivas, levou oito gols, permitindo a ascensão surpreendente e desesperada de Vasco e Bahia.
Pelo peso de sua camiseta imaculada, ninguém acreditava no ocaso. A queda doeu até o último minuto.
O elenco contrariou as façanhas e proezas do passado.
Como confessou o professor da USP, José Miguel Wisnik, em Veneno Remédio: O Futebol e o Brasil (Companhia das Letras, 2008): “na Baixada Santista, aconteceu de tudo o que se pode e o que não se pode imaginar em matéria de criação futebolística. Como um fabuloso time que pôde jogar junto muito tempo, o que não acontece mais, a combinação dos talentos e da genialidade se decantou e quintessenciou fantasticamente”.
De 1956 a 1969, o Santos ganhou tudo que tinha para disputar: os campeonatos paulista (58-60-61-62-64-65-67-68-69), brasileiro (61-62-63-64-65-68), Rio-São Paulo (59-63-64-66), sul-americano (62-63) e mundial (62-63).
Formou o maior esquete da história, com ecos de lampejos e revelações nas décadas seguintes.
Normalizou o fantástico, o sobrenatural, com uma produção infindável de ídolos: Araken Patusca, Zito, Pepe, Dorval, Pelé, Coutinho, Mengálvio, Gilmar, Carlos Alberto Torres, Edu, Clodoaldo, Serginho Chulapa, Giovanni, Léo, Elano, Neymar, Ganso e Rodrygo.
O torcedor santista mal se sentava na arquibancada, não poderia se distrair sob o risco de perder um lance memorável.
O Santos criou a expressão “gol de placa”, interrompeu guerra na África para jogo amistoso, dispensou juiz na Colômbia para que Pelé, expulso, retornasse ao gramado.
Milagres se sucederam como se fossem corriqueiros no litoral paulista. Raios caíram várias vezes no mesmo lugar. Emergiram sempre promessas das categorias de base.
Achávamos que seu escudo, símbolo da transcendência no esporte, jamais seria profanado.
Já foi o segundo time de todos os brasileiros devido à admiração coletiva pelo balé de seus craques, hoje é de ninguém.
A goleada de 7 a 1 aplicada pelo Inter no Brasileirão sinalizava o rebaixamento.
Coincidências não existem na vida espiritual. O jazigo de Pelé no Memorial Necrópole Ecumênica, a 850 metros do estádio, tem vista para a Vila Belmiro.
Ele não teve como não testemunhar o estertor do clube de coração, a humilhação da tradição santista, o mergulho do peixe no abismo.
A centenária Vila Belmiro se transformou num segundo cemitério, na incrédula segunda divisão.
E Pelé morreu outra vez no decorrer de um ano, de desgosto.