Ao amar alguém, você se angustia por situações no passado em que não esteve presente.
Os castigos e tombos experimentados na infância pela sua atual companhia doem, assim como seus próprios traumas e suas humilhações.
Jamais gostaria que minha esposa tivesse sofrido o que sofreu. Gostaria de tirar qualquer dor da sua memória num passe de mágica.
Se ela me descreve uma tristeza do seu passado, juro que peno como se estivesse acontecendo de novo, e me dá uma raiva de mim por não a ter conhecido antes para permanecer ao seu lado oferecendo colo e amparo.
Amar é cuidar até do que está fora do seu controle. Você se coloca no lugar do não lugar da pessoa e entende as suas escolhas, respeita as suas feridas e partilha da sua vulnerabilidade. Você tem vontade de soprar o machucado para parar de arder. E também vem uma ânsia de encontrar aqueles que fizeram mal a ela e lhes aplicar uma lição. Já briguei em pensamento com desafetos históricos de Beatriz. Eu pego a sua mochila e a defendo mentalmente, retroativamente, na sua escola, na sua universidade, no seu trabalho.
Na última semana, o meu melhor amigo, Zé, disse algo que cortou o meu coração. Ele contou que, quando aparece nos reencontros de sua turma do Colégio Anchieta, o que mais escuta é “Não me lembro de você, estudou em que ano?”.
E o lapso não é porque ele mudou a sua fisionomia e se encontra completamente diferente do menino de uniforme branco e azulado de antigamente.
Seus olhos claros permanecem ávidos por cumplicidade e luz. O tempo não incutiu uma cirurgia plástica nos seus traços – a essência está ali, inalterada –, apenas aprofundou a sua serenidade.
Mas ele era tão sozinho, tão isolado, que os colegas não gravaram o seu rosto, apesar da década seriada convivendo na mesma sala de aula e dividindo apresentações em grupo e jogos esportivos. Com exceção do fiel escudeiro Guilherme, esqueceram-no encostado na parede lateral no fundão da sala.
Alunos passam o ensino inteiro sem fazer amigos, no ostracismo de seus desejos, no desamparo de seus sonhos.
Esse bullying silencioso e cruel é ainda subestimado: o bullying da amnésia, o bullying do pouco caso a uma vida, o bullying do desinteresse, o bullying da ausência de convites, o bullying do deserto do recreio.
Alunos passam o ensino inteiro sem fazer amigos, no ostracismo de seus desejos, no desamparo de seus sonhos.
Hoje Zé é popular, sociável, com redes intermináveis de contatos no tênis, na academia, no futebol, na praia, na filosofia, na psicanálise.
Por mais que a sua presença seja disputada na maturidade dos seus 50 anos, a rejeição jamais apaga as suas marcas no período de formação da sua identidade.
Tenho certeza de que ele ainda sofre, e eu sofro com ele, por ele. Por tudo o que não posso cicatrizar. Por não ter estado junto, segurando a barra com ele. Eu digo: “Desculpa”. Peço desculpas pelos outros, que não perceberam o valor de sua lealdade.