Foi uma cena assombrosa: o joelho do defensor do Argentinos Juniors Luciano Sánchez saiu do lugar após pisão de Marcelo, em partida válida pelas oitavas de final da Libertadores.
Num drible, aos 10 minutos do segundo tempo, o lateral do Fluminense apoiou a sua chuteira com força na perna estirada do adversário no chão. Aqueles segundos das travas fincadas já serviram para partir o osso, com impacto semelhante ao de um cutelo em acha de lenha.
Quem viu ao vivo se arrepiou e evitou assistir ao replay.
Luciano teve luxação completa do joelho esquerdo (deslocamento entre fêmur e tíbia). Sua expectativa de recuperação é de oito a 12 meses.
Marcelo se desesperou com a sua entrada violenta, pediu desculpas na hora e ainda se retratou nas redes sociais.
“Hoje, vivi um momento muito duro dentro de campo. Sem querer, lesionei um companheiro de profissão. Quero desejar-lhe a melhor recuperação possível, Luciano Sánchez. Toda a força do mundo.”
Apesar da alegação de ter sido “sem querer”, sem intenção, existiu a imprudência. O atleta agiu com brutalidade. Ao invés de tirar o pé na finta, preferiu deixar, colocando em risco a integridade física do adversário.
Ninguém duvida da sinceridade do seu arrependimento, só que não dá para desconsiderar a temeridade da dividida de um jogador experiente como Marcelo. Ele é um dos mais vitoriosos alas da história do futebol, campeão por cinco vezes da Liga dos Campeões, elogiado por Maradona, no auge dos seus 35 anos recém-completos.
Ainda que o jogador esteja fora do confronto de volta, com a possibilidade de ampliação da pena por mais rodadas pela Conmebol, seu caso nos leva a pensar se não temos que prevenir a violência em campo e não mais banalizar o cartão vermelho.
Sem personalizar na figura carismática e unânime de Marcelo, que dificulta a neutralidade do debate, a suspensão não precisava ser mais rigorosa?
Como disse Maquiavel, diante de nossos julgamentos viciados pela emoção: “Aos amigos, os favores; aos inimigos, a lei”.
Se o lance fosse de autoria do também tricolor Felipe Melo, conhecido pela sua fama de xerife turrão, encontraria ecos semelhantes de complacência?
Eu acredito que aquele que agrediu, incidentemente ou premeditadamente, deve ficar fora dos gramados pelo mesmo tempo de recuperação do atleta lesionado. Seria mais justo. Sentiria na alma o que o outro sentiu no corpo. Atravessaria um processo de reabilitação moral de modo simultâneo à fisioterapia do seu colega de trabalho. Entenderia a gravidade do ato, o peso da sua responsabilidade. O jejum de bola entre os dois consolidaria os laços de justiça e de solidariedade
Eu me lembro da tragédia que aposentou precocemente um dos meus ídolos da infância, o goleiro paraguaio e tricampeão brasileiro Benítez. Num amistoso em Alegrete, em dezembro de 1983, chocou-se com o atacante Celeni, após recuo de Mauro Pastor, e sofreu uma pesarosa contusão na medula. Celeni prometeu que abandonaria o futebol se Benítez não pudesse retornar ao esporte, e assim o fez.
Existem fatalidades, existem acidentes, o que não pode persistir é a impunidade amnésica diante de carreiras abreviadas.