Lembro que, na infância, minha mãe queria porque queria que eu usasse galochas. Falei para ela, numa bravata, que jamais teria necessidade de calçá-las. Retiro o que eu disse. Viramos um triste banhado.
Impossível sair de tênis ou de sapato baixo. As meias molhadas congelam o corpo em minutos. A água é um degelo das nuvens.
Sinto saudade de quando a aparência no frio era o maior de nossos problemas.
Ponho as galochas pretas de luto.
Infelizmente, o ciclone veio para ficar em nossa vida. Até entendo o motivo de ter gostado dos gaúchos, somos excelentes anfitriões. Não desta vez. Não será jamais acolhido como a bela e admirável neve.
Ele sempre existiu, mas mudou de intensidade e de nome. Antes, suas aparições, conhecidas como vendavais, não causavam tantas perdas e não eram ostentadas com igual vigilância meteorológica.
Hoje, o ciclone chama atenção semanalmente com toda a seriedade científica.
Filho do furacão Catarina, gigante ciclope com seu olho solitário, não sei se ele se apaixonou pela nossa chuva. Algo aconteceu em seu coração diabólico, para estranho exibicionismo de força e poder. Está mostrando seus dotes físicos para algum alvo de sua idealização.
Realiza aqui a mais descarada insanidade, levando os telhados, cortando a nossa energia elétrica. Aulas são canceladas, quase 1 milhão de pessoas padecem sem luz, comércio entra em estado de alerta dispensando seus funcionários, ventos gelados azucrinam as janelas a 120 km/h.
Era o que faltava. Assim como o tsunami acontece na Indonésia e o terremoto, no México, o Rio Grande do Sul passa a ser conhecido como terra do ciclone extratropical. Não merecíamos tal estigma.
Tem estragado o nosso inverno, despertado pânico nos turistas, alterado abruptamente as paisagens naturais, irritado os rios e lagos.
Você trabalha com medo, você sofre por receio da situação dos parentes no Interior, você cancela qualquer evento a céu aberto.
Esqueça os restaurantes, estarão no escuro sem a possibilidade de receber fregueses. Esqueça a esperança de estacionar na rua. Esqueça os passeios. Esqueça a rotina.
O caso é mais grave do que não poder sair. Envolve milhares de pessoas expulsas de casa, com tudo o que conquistaram ao longo da existência extinto de uma hora para outra, entre móveis e pertences.
O pouco que tinham tornou-se sumariamente nada.
São Leopoldo, por exemplo, não conseguiu nem reacomodar as famílias de desabrigados que lotaram o ginásio Celso Morbach em 16 de junho, quando a chuva alcançou volume histórico de mais de 246 milímetros em menos de 18 horas, e agora já arca com novas vítimas de alagamento.
O ciclone atrai o que tem de pior nas nossas calamidades, reúne todas as tragédias num só dia: a enchente no chão e a devastação nos ares.
Estamos em obras. Permanentemente em obras.