Há milagres que não são explicáveis.
Já seria impensável sobreviver à queda de um avião, sobretudo sendo criança, num estado de vulnerabilidade. Mais difícil ainda é suportar 40 dias em floresta hostil. A proeza aconteceu na Colômbia.
Os irmãos Lesly Mukutuy, 13, Soleiny Mukutuy, nove, Tien Noriel Ronoque Mukutuy, quatro, e Cristin Neruman Ranoque, um, foram os únicos sobreviventes de um acidente aéreo ocorrido em 1º de maio, aparentemente devido a uma falha mecânica. Eles cumpriam o trajeto entre Caquetá e San José del Guaviare. A mãe das crianças, o piloto e um líder da comunidade nativa morreram.
Ninguém mais acreditava que elas poderiam estar vivas. A operação de resgate com mais de cem militares creditou a façanha a um desígnio divino. Os resgatadores, membros da guarda indígena, cantavam ao final e agradeciam alegres com mãos ao céu. O presidente colombiano, Gustavo Petro, exaltou a ressurreição da esperança em seu Twitter.
Os quatro irmãos da comunidade Huitoto, salvos na última sexta-feira (9), suportaram temperaturas baixas, chuva constante, falta de alimentação e de hidratação. Acabaram jogados no desconhecido da mata, sem mantimentos ou socorro, tendo que se desvencilhar da ameaça de jaguares e cobras.
No instante em que foram amparadas, a cinco quilômetros do local do acidente, as crianças encontravam-se frágeis, desnutridas e descalças.
Escaparam ilesas da queda da aeronave, mas enfrentaram um perigo muito maior: o labirinto da selva amazônica, sem acesso a estradas e rodeado de rios sinuosos. Nem o mais preparado soldado teria controle diante de tamanhas privações.
Emana da sobrevivência uma lição de coragem. O quanto irmãos unidos são capazes das mais grandiosas demonstrações de cuidado e de proteção.
A menina Lesly, na fronteira de idade entre a infância e a adolescência, assumiu a maternidade precoce após perder a mãe agonizante em seus braços. Manteve seus irmãos menores em segurança e se responsabilizou por carregar no colo o bebê do grupo, de um ano.
Liderou um acampamento baseado na fé. Não se entregou ao cansaço, muito menos ao desânimo.
O pastor belga de seis anos, Wilson, farejou a mamadeira de Cristin abandonada na vegetação e deu início à expedição de recuperação dos pequenos sobreviventes. No meio do desespero, as crianças chegaram a brincar com o cachorro, que as localizou antes mesmo da equipe de resgate.
Talvez essa aparição do cão socorrista tenha sido a senha da resiliência, gerando um pequeno momento de alegria e de conforto apesar da gravidade da tragédia. Quem brincaria com o cachorro em hora tão grave? Raramente um adulto sairia do seu estado de pânico e pessimismo.
Unicamente as crianças têm condições de criar uma trégua ao infortúnio, um recreio nas adversidades.
O riso vindo de uma brincadeira inesperada com o animal peludo socorrista, a gargalhada a partir das carícias no lombo de estranha visita prolongaram a existência durante a tristeza e o luto. Mais do que um alívio, o animalzinho garantiu uma sobrevida lúdica.
As crianças sobreviveram porque jamais deixaram de ser crianças.