Já estou acostumado a assistir a um show pelo celular do espectador na fila da frente. Meu pescoço não sobe mais do que a mão do vizinho segurando o aparelho lá em cima. Meu campo de visão fica coberto pela telinha. Felizes os tempos em que você reclamava do azar de ter alguém alto na poltrona dianteira.
Eu me conformei. Há gente que não precisa comprar ingresso, poderia atalhar e adquirir um DVD do artista — assim nem sofreria com a qualidade amadora da sua gravação.
Mas percebo um costume ainda pior: fotografar pratos nos restaurantes. As contas pessoais nas redes sociais viraram cardápios.
Tão preocupada em ostentar uma existência perfeita e idílica em suas postagens, a pessoa deixa a comida esfriar. É uma falta de educação com a pontualidade do preparo, um desrespeito com o timing das refeições, com o carinho do chef e agilidade dos garçons.
Quem faz a foto não deixa mais ninguém comer, é uma presença abusada. Os acompanhantes precisam esperar o término da sessão de cliques. Vão segurar o garfo e a faca no ar, congelados, como se estivessem cometendo algo errado simplesmente por se servir quando as porções chegam à mesa.
— Não mexa em nada!
— Não estrague o cenário!
Porque o flagrante exige o prato montado e intacto. É um slow food forçado, um boicote contra a urgência do apetite.
O camarão é o mais fotogênico, o mais visado, o mais instagramável. Se houver porção de camarão, aguarde paparazzi. É o alimento mais repassado adiante, top model dos frutos do mar.
Não identifico interesse em retratar mexilhões, por exemplo, tão feiosinhos, sempre excluídos das publicações.
O curioso é que não são feitos registros do buffet a quilo. Ou da comidinha de casa. Não há cenas circulando nos stories da montanha no prato, com fios de massa grosseiramente escapando pelas bordas, ou do simpático guisadinho com arroz, ou do ovo queimado nas pontas.
Das quatorze refeições da semana, apenas se favorece aquele menu caro de exceção que sequer é aproveitado dignamente, que sequer é degustado com a merecida discrição.
Existe uma ausência de naturalidade na reprodução dos nossos hábitos alimentares.
Sinto que vem acontecendo uma anorexia da realidade, uma compulsão de retratar o belo sem mastigar e saborear a vida de verdade. O que não é mostrado parece que não foi vivido. Desprezamos o valor secreto das experiências.
Se somos o que comemos, somos cada vez menos o que fotografamos.
Era dos cliques
Opinião
Felicidade é quando esquecemos de tirar foto
Tão preocupada em ostentar uma existência perfeita e idílica em suas postagens, a pessoa deixa a comida esfriar
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