É fundamental num relacionamento saber coçar as costas do outro.
Tragédia é quando sua companhia sente a comichão insuportável e súbita e você não consegue aplacar o desconforto. Ela começa a se desesperar, ralar as vértebras na quina da porta, raspar-se nas paredes, pular como se tivesse um inseto dentro da camisa.
Há gente que não sabe coçar mesmo. Não nasceu para a caridade. Finca as unhas, deixando marca, ou apenas acaricia, espanando os dedos.
Não se trata de espremer espinhas, tampouco é massagem.
Coçar as costas depende da exatidão do movimento. Exige uma paradoxal firmeza macia, uma arte destinada a poucos.
Muitos maridos, muitas esposas desistem de pedir após a terceira tentativa e se recolhem à frustração eterna.
A inabilidade em esfregar o parceiro no casamento é tão grave quanto não abraçar ou não beijar na boca.
Esse carinho primitivo deveria constar como item indispensável no curso de noivos. Demonstra proteção — depois disso, você é capaz de confiar na pessoa pelo resto da vida.
É a amizade do toque. A cumplicidade de levar a sério o surto incontrolável do mal-estar e não fingir que é bobagem.
Significa também lealdade nos momentos embaraçosos da existência — eu vi o contentamento no rosto de minha esposa quando não demorei para trazer alívio e acertei de primeira a região ameaçada pelos tremeliques.
Há incautos que passam a mão por toda a extensão do dorso e não localizam o ponto da perturbação, o ponto cego, inalcançável pelos braços daquele que sofre.
Perdem-se com o GPS da voz. O padecente fica gritando “mais para o lado”, “mais para o lado”, e nada de encontrarem o caminho do meio. É como a brincadeira do quente e frio desembocando no freezer dos laços.
O tamanho das unhas não interfere no desempenho, desde que se mantenha o foco. Não vale arranhar, sangrar ou esfoliar, não vale se aproveitar da situação de vulnerabilidade e agredir, descontando recalques da convivência.
A compressão dos dedos terá o peso de uma esponja e só durará alguns minutos. A invasão será superficial, indolor, intermediária entre picada de mosquito e pontada de acupuntura.
A posição ideal do beneficiado é de pé, com a cabeça lançada para frente, naquela inclinação para receber uma bênção.
Cuidado com a vontade. Coçar é delicioso e insaciável. O coçador tem um prazer semelhante ao do coçado e pode extrapolar o entusiasmo. Facilmente a coçadinha inocente desliza na culpa de machucar e no pedido de desculpa.
O ato se caracteriza pela fricção sensual, de baixo para cima, como fazer a barba. É descobrir a zona de irritação e não tirar a mão dali.
A cura virá com a constância, com a dedicação exclusiva do gesto. Não é permitido coçar e ver televisão, coçar e olhar para o lado, coçar e mexer no celular. Ações paralelas quebram o ritmo e diminuem a qualidade do serviço. Distrações revelam indiferença. Nessa hora, mergulha-se na contemplação transcendente da pele.
Coçar as costas é um socorro amoroso de grande utilidade. Envolve compaixão e perícia.
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Opinião
A arte de coçar as costas
Tragédia é quando sua companhia sente a comichão insuportável e súbita e você não consegue aplacar o desconforto
Fabrício Carpinejar
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