Do mesmo modo que não compreendemos completas injustiças, como a precocidade do adeus a crianças e jovens, tampouco admitimos o mais difícil: a morte mais deixa passar do que leva pessoas consigo.
Mas a sua tolerância é jamais lembrada. Quem recebe a fama é o anjo da guarda.
Apenas enxergamos os enterros, e não as existências poupadas de um infortúnio certeiro. A morte aceita que aviões com equipamento vencido pousem, autoriza que ônibus com motorista cochilando não caia em curva, salva pedestres desatentos, recua, com o sopro fundo do pulmão, bebês de perto das janelas abertas dos altos dos edifícios.
Ninguém elogia a sua compaixão. Quantas vezes demos oportunidade e ela não veio? Gás vazando? Dedos no fio desencapado? Carro desgovernado? Piso molhado? Escada com falhas? Assalto em que, inadvertidamente, colocamos as mãos no bolso?
Continuamos ilesos por méritos da morte.
Na verdade, somos frágeis, dançando com uma das pernas suspensas no abismo, à mercê de inúmeras fatalidades invisíveis.
Se você está vivo hoje, foi a morte que o preservou. Priorizou a sua sobrevivência, apesar de qualquer reclamação de seus superiores de que anda cabulando o serviço.
Ela nem sempre quer o nosso fim, muitas vezes adia diagnósticos, burla sentenças e permite que tenhamos uma segunda chance para ressignificar a trajetória.
Há pais injustos com a sua prole que ganham tempo para selar as pazes, há irmãos brigados que retomam a urgência do afeto, há profissionais infelizes que abandonam os seus medos para realizar os sonhos engavetados.
Ela tem noção dos benefícios de nos dar um bom susto. Assombra-nos para gerar mudanças positivas. Ainda que nunca receba os créditos e bata recordes de índices de rejeição, usa o seu poder para endireitar aptidões antes fadadas à ausência de propósitos.
Porque sabe muito bem que tem gente teimosa que somente se transforma perto de morrer, com algum problema sério de saúde. Outrora, seguiria cometendo os mesmos equívocos de indiferença e de egoísmo, ecoando o vazio emocional de suas escolhas para a eternidade. Se não passasse pela experiência do “quase”, desperdiçaria o seu dom. A proximidade traumática com a finitude sacode e revoluciona condutas.
A morte esquece horários, pula acontecimentos, dorme enquanto deveria estar executando as suas tarefas e vive se apaixonando por suas vítimas.
Não é infalível como fantasiamos, e sim humana e influenciável.
Suas concessões são maiores do que as suas encomendas. Enfrenta dúvidas vocacionais, atravessa crises de consciência, fraqueja diante de um velho casal dormindo de conchinha e mente para o destino que não encontrou ninguém lá. Simplesmente não resiste aos filmes românticos inspirados em histórias reais.
Por isso, tudo o que acontece de errado em nossa vida é lição, tudo o que acontece de bom é gratidão e tudo o que não acontece é proteção.