A escritora Lygia Fagundes Telles faleceu na manhã deste domingo (3). Ela se retirou para a sua alma, como se morrer fosse sair de uma festa discretamente, sem se despedir, sem nenhum alarde ou aceno, sem avisar o anfitrião.
Aos 98 anos, a grande dama da literatura brasileira pegou a sua bolsa e sua capa no cabideiro da entrada e deu um adeus silencioso, em pensamento.
É natural que todo mundo se pergunte: onde está Lygia?
Seus leitores, como eu, não dirão que ela foi embora. Ela ainda está exuberante nos contos cristalinos de A Noite escura e mais eu e Conspiração de Nuvens ou nos romances Ciranda de Pedra, As Meninas e As Horas Nuas.
Lygia era linda por dentro e por fora. As sombras acentuavam os traços de seu rosto.
Porque ela tinha mistério, ela sabia que a beleza não estava nem na luz da manhã, nem na sombra da noite, mas no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa incerteza.
Queria a verdade sobre o sentido da vida sem a omissão das reticências. Ainda que a verdade fosse para poucos amigos.
Ousou assumir o risco. Levava realidade para o sobrenatural e trazia o sobrenatural para a realidade.
Nosso Prêmio Camões, a mais alta honraria da língua portuguesa, e vencedora de quatro Jabuti (1966, 1974, 1996 e 2001), aceitou casar corajosamente com a palavra. Carregou a sua solidão como se fosse uma companhia.
Brilhava em sua escrita uma elegância de ourives. Transformava o adjetivo em verbo, no lugar certo, na ordem certa. Era como se ele sempre estivesse ali:
“Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura como os pálidos medalhões de retratos esmaltados”.
Agora ficaremos com essa saudade. Essa presença estranha, esquisita, desajeitada dentro de nós. Como um vestido que não é para usar, só para olhar. Só para ver como ele era. Depois a gente dobra de novo e guarda, mas não se cogita jogar fora. Já é parte de nossa pele, do nosso arrepio, da nossa experiência emocionada.
Lygia nos atravessou. Quando ela nos tocou com a sua inspiração, passou a viver em nós, a habitar nossas memórias, a se misturar com os nossos anseios e desejos, a alterar o destino de nossas frases.
Ela pedia: me leia, me leia enquanto ainda estou quente. Ela entendia de amor.