Bicampeãs olímpicas da classe 49er FX da vela, Martine Grael e Kahena Kunze estão entre as principais atletas do planeta. As brasileiras são apontadas, inclusive, como favoritas a conquistar o tricampeonato nos Jogos de Paris-2024.
Mas o velejar que beira a perfeição, a sintonia e a harmonia existentes entre elas e o barco é fruto de um trabalho desenvolvido há muito tempo entre as velejadoras, que tem uma grande equipe ao lado, liderada pela treinadora gaúcha Martha Rocha Lobo.
A coluna conversou com Martha para saber os segredos dessa parceria de sucesso, o planejamento para Paris e também alguns bastidores sobre como elas fazem para evitar o desgaste gerado pela pressão por alta performance.
Pelos resultados dos últimos anos, a dupla Martine e Kahena é aquela que todos querem superar. Como vocês tratam isso ?
Sim, elas são o alvo, a dupla a ser batida. Quando a gente fala em Martine e Kahena, todos têm muita expectativa, tanto a torcida quanto as adversárias. Elas colocam o sangue nas competições, são atletas de ponta e não tem como não esperar grandes resultados.
E para seguir no topo até Paris, qual o planejamento adotado por vocês ?
O que a gente fez foi dar uma pausa boa, pra respirar depois de Tóquio, e quando voltamos para o Mundial em Omã, em novembro do ano passado, estávamos cientes da realidade que era competir sem treino anterior. Era um campeonato onde o objetivo da equipe era adquirir ritmo de competição, se encontrar pela primeira vez (desde a Olimpíada). O objetivo não era vencer e sim se reorganizar, e é assim que nós tratamos, com o objetivo da equipe em primeiro lugar. Não tem como fazer planejamento pra ganhar tudo. Claro que o alto nível técnico delas faz ter grandes resultados. No Mundial, sem treino, foi terceiro lugar e teve segundo em Copa do Mundo, vitórias em campeonatos menores. Já tivemos treinos na raia olímpica, e nesse ciclo o plano principal é se desafiar a ser melhor ainda, o que é realmente bastante difícil, mas é isso que diferencia os grandes atletas das pessoas comuns.
E quais são os grandes desafios que vocês têm até a Olimpíada ?
Nesses novos desafios, contamos com objetivo pessoal de cada uma, todos na equipe tentando ser mais profissionais, melhores. O material de competição mudou (mastro e vela). É completamente diferente do ciclo anterior. Isso é um aspecto motivacional pra todos. Precisamos aprender muita coisa. Mudou o equipamento, muda nosso conhecimento. Temos que construir tudo de novo, com base no que foi feito, mas é um desafio. Isso tem ocupado grande parte do nosso treinamento e planejamento. Precisamos saber quanto tempo é necessário pra desenvolver esse novo material.
E as competições ?
Estamos entrando na fase das principais competições. Agora tem Europeu na Dinamarca (em Aarhus, de 5 a 10 de julho) e no final de agosto o Mundial no Canadá (em St. Margarets Bay até 5 de setembro). Além da preparação, tem todo um planejamento de levar o material pra esses lugares, e nós contamos com o apoio da Confederação Brasileira de Vela (CBVela) e do Comitê Olímpico do Brasil (COB) pra fazer essa missão acontecer.
E as demais competições, a escolha pelo calendário a ser feito...
Na vela, tem o circuito olímpico, que equivale aos Grand Slam do tênis, e a partir deles é feito um ranking. Mas o que mais importa é a troca de aprendizado, o crescimento técnico que essas competições trazem. Na vela é muito importante treinar no local das competições com muita antecedência pra se adaptar ao clima, ao tipo de onda, de maré, vento, quais são as tendências que esse local apresenta. E todas as principais adversárias estão nesses locais treinando com antecedência. Na vela é necessária uma comparação direta de velocidade, de teste de material, de estratégia. Não tem como uma equipe, um atleta, não participar desses eventos e esperar um crescimento técnico suficiente pra brigar por medalha.
Entre o Europeu e o Mundial, elas participaram da SSL Gold Cup, que é uma disputa por equipes e que segue um formato parecido com o da Copa do Mundo de futebol.
Sim, elas também participarão da SSL, de 7 a 14 de agosto, que e é uma competição entre atletas ícones da vela e de um aprendizado de altíssimo nível.
E como a gaúcha Martha Rocha Lobo foi parar na vida de Martine e Kahena ?
"Sou abençoada, trabalho muito, mas muito feliz com o que eu faço"
MARTHA ROCHA LOBO
Treinadora da dupla bicampeã olímpica Martine Grael e Kahena Kunze
Eu me sinto uma abençoada. Eu comecei a minha carreira de treinadora no Veleiros do Sul, como todo mundo começa, dando treino para as equipes de base, eu tinha 17 anos. Comecei dando treino pro pessoal do Optimist, que tem 12 anos, e entendi que era algo que eu gostava e tinha habilidade e resolvi levar como uma carreira. Fui fazer Educação Física na UFRGS já pensando em ser treinadora e não parei mais. De técnica dos jovens do Veleiros do Sul, passei a ser chamada para compor a equipe brasileira em campeonatos internacionais, nas categorias jovens ainda. Passei a ser chamada por outros atletas e nesse caminho apareceram Martine e Kahena na minha jornada. Fizemos parceria e treinei elas no 420 para atletas de 16 a 18 anos e foi uma parceria de sucesso. Nos demos bem, evoluímos, criamos um vínculo bom. É uma evolução em conjunto. O treinador não fala todas as verdades, mas ajuda a construir conhecimento e ajuda o atleta a atingir o seu potencial. As estrelas são elas, e eu me sinto abençoada de poder acompanhar esse crescimento delas. Em 2009, elas foram campeãs mundiais da classe 420 e eu era a treinadora, e nós vimos que era uma parceria de sucesso e, desde lá, a gente está ligada de alguma forma, com bons resultados e muito aprendizado.
Como é esse convívio de uma parceria campeã. É sempre tudo um lindo ou tem momentos de tensão, estresse entre elas ?
Essa pergunta sempre aparece porque é natural. Todos os envolvidos são seres humanos e temos as nossas emoções. Então, sim, até pelo tempo de convívio existe uma liberdade de sermos nós mesmos. Claro que tem desentendimentos, momentos de explosão, porque esse nível de competição é altíssimo e então tem muita pressão. Mais uma pressão delas querendo se superar. Essa pressão é interna, por querer evoluir e fazer o melhor. Um barco em dupla tem sim alguns desentendimentos, mas o que mais vocês veem é como a gente trabalha, porque os desentendimentos são encarados como parte do trabalho, da nossa caminhada. E nós resolvemos isso deixando o sangue esfriar quando é necessário e fazendo grandes conversas, discutimos as responsabilidades pra determinar porque algo não saiu como esperávamos. Mas temos a certeza que elas são o que são porque são uma dupla, uma completa a outra. Então, o que mais aparece é o trabalho, unindo essas partes, com muita conversa pra ir pra competição na melhor sintonia, e é assim que elas trazem o seu melhor resultado.
Tem um trabalho mental forte?
Sou coaching, mas não faço atendimento. Mas é algo que me ajudou na carreira, com a experiência adquirida com vários atletas, como fazer as conversas acontecerem pra ir para um lado legal. Temos a psicologia do esporte com a Daniele Seda, que trabalha as questões de equipe. Ela trabalha junto com a parte técnica, porque o técnico querendo ou não é uma posição de liderança, e esses aspectos do trabalho em equipe são constantemente reforçados. São aparadas algumas arestas, mas realmente é o que vocês (público) veem. Tem uma sintonia. É uma dupla que consegue se unir bem, se completam, são amigas, óbvio que tem algum desentendimento, alguma emoção extravasada de momento. Mas nunca houve um momento de desentendimento com desrespeito. Isso nunca aconteceu. Não sei nas outras modalidades, mas pra nós é extravasar a emoção e voltar a ter foco. É uma sintonia, não precisamos nem falar, uma entende a outra pelo olhar. Às vezes, sei o que elas estão pensando e já respondo porque nos conhecemos há muito tempo. É o lado positivo de uma equipe que trabalha junto há muito tempo e isso encurta caminhos.
Eu estava na Baía de Guanabara em 2016 quando elas conseguiram o primeiro ouro olímpico em um final emocionante. Parecia um jogo de futebol no Maracanã ...
Foi lindo isso (Rio 2016). Não haverá nada igual. Na casa delas, com todos os amigos e familiares ali na praia. E acredito que isso serve de inspiração pra uma nação. O povo brasileiro merece essas cenas, dá esperança, alegria, felicidade e orgulho. No fim, é isso que torna a jornada bonita e satisfatória. Dividir isso tudo com outras pessoas.