O município de Cristal, no sul do Estado, está há cinco meses sem contar com o trabalho de um fiscal agropecuário estadual na Inspetoria de Defesa Animal (IDA). Isso significa que a cidade, com 832 propriedades rurais ativas e saldo de 32,4 mil bovinos e bubalinos, deixou de ter referência em fiscalização para prevenir doenças como febre aftosa, tuberculose bovina, raiva e brucelose, controle considerado fundamental para assegurar sanidade e qualidade.
Cristal tinha uma fiscal estadual até 14 de março de 2018. Neste dia, o então secretário da Agricultura, Ernani Polo (PP), assinou o deslocamento da servidora Vânia Dutra Costa “a bem do serviço público”. Eram os últimos dias dele à frente da pasta – que deixou o cargo para concorrer a deputado estadual. Antes de sair do governo, assinou seis remoções – quatro fiscais agropecuários e dois técnicos agroflorestais.
A Associação dos Fiscais Agropecuários do RS (Afagro) tenta reverter judicialmente os atos, mas não obteve êxito até o momento. Polo informou, via assessoria de imprensa, que não se manifestaria.
No processo de transferência, a única justificativa apresentada foi de que a servidora seria realocada na IDA de Tapes, “que apresenta demanda de trabalho em uma escala muito mais elevada”. Dados da própria secretaria contestam a afirmação. Cristal tem 832 propriedades ativas e 32,4 mil bovinos e bubalinos, enquanto Tapes tem 430 propriedades rurais e 21,7 mil animais.
A Secretaria da Agricultura emitiu contraponto em nota pelo diretor do Departamento de Defesa Agropecuária (DDA), Antônio Carlos de Quadros Ferreira Neto: “A remoção deu-se exclusivamente a bem do serviço público, pois o colega da IDA do município de Tapes pediu aposentadoria. Tapes atende também Sentinela do Sul e Cerro Grande do Sul. A remoção atende legislação que regulamenta a matéria.”
Como Vânia era a única veterinária em Cristal, o processo de remoção informou que seria assinado convênio com a prefeitura da cidade para transformar a IDA em um “posto de atendimento”, com profissionais disponibilizados pelo município. Esse acordo, contudo, não foi assinado até hoje. Em consequência, a fiscalização está precarizada – um veterinário de Camaquã, que atende Chuvisca e Arambaré, foi incumbido de ir também a Cristal.
Processo controverso
O processo administrativo de deslocamento da veterinária, obtido pela reportagem, contém pontos controversos. No parecer jurídico que embasa a remoção, é informado que a transferência deveria ser precedida de manifestações formais do Departamento de Defesa Agropecuária (DDA) e da “chefia hierarquicamente superior imediata do servidor”. Somente o DDA, proponente da medida, foi consultado previamente. O supervisor imediato, lotado em Pelotas, foi instado a opinar um dia após a remoção ter sido assinada por Polo, contrariando o que dizia o parecer jurídico.
Na sua manifestação, o supervisor enumerou motivações para se opor ao ato consumado.
“Afirmo com convicção, como supervisor regional, que no momento não tenho como abrir mão da colega Vânia”, escreveu o chefe imediato.
Ele ainda registrou que a IDA de Camaquã não teria condições de absorver as funções de Cristal e destacou que, até aquele momento, não havia “nada encaminhado” para transformar a unidade do município em posto de atendimento em convênio com a prefeitura.
Sobre a transferência da veterinária para Tapes, o supervisor anotou que “se descaracteriza um pouco a necessidade de serviço, pois ficou demonstrado que em Cristal realmente há necessidade”. Ele ainda definiu a conduta da veterinária como “extremamente correta”.
Possíveis efeitos da retirada do fiscal da IDA de Cristal já são percebidos na rotina. Documento interno da Agricultura indica que, em maio de 2018, a meta da inspetoria do município era fiscalizar a vacinação contra a febre aftosa em 22 propriedades, mas isso foi feito somente em duas unidades de criação de animais. Em ofício, a supervisão regional foi instada a se manifestar pelo descumprimento do objetivo.
Pressão política pela transferência
Um mês após a remoção assinada por Ernani Polo, o vereador Paulo Cesar Flores de Oliveira (MDB) foi à tribuna da Câmara de Cristal afirmar que fez pressão política a pedido de produtores rurais da região. Segundo o vereador, a fiscal causava “transtorno”. Ao constatar irregularidades, ela tinha prerrogativa de aplicar notificações, autos de infração e multas.
“Quero dizer aos produtores, que pediram a mim, vereador da bancada do MDB, que não medi esforços para atender a reivindicação para a inspetora Vânia, da inspetoria veterinária, aonde trazia um transtorno tão grande para os nossos produtores, onde humilhava os nossos produtores humildes. Hoje ela não está mais aí. Se ela não saísse, eu saía do meu partido, o MDB. Atenderam o pedido e ela não volta. Lamento que vai para outro município incomodar”, anunciou o vereador.
Procurado, o vereador reafirmou que tinha tratado do assunto:
– O que falei na tribuna é que atendi a um pedido da comunidade. Ela maltratava, multava,
e eram os pequenos que reclamavam. Como representante do povo, tinha de agir para melhorar o atendimento na nossa inspetoria. Cheguei a ir à Secretaria da Agricultura, levei alguns BOs (boletins de ocorrência) de produtores rurais registrados contra ela. E tratei disso diretamente na Casa Civil, no Palácio Piratini.
Funções do fiscal agropecuário
O fiscal agropecuário estadual tem, entre as funções, divulgar o procedimento preventivo, fiscalizar as ações em áreas rurais e, eventualmente, aplicar as vacinas em propriedades de risco ou inadimplentes em campanhas anteriores, o que é chamado de “agulha oficial”. Também atua na fiscalização da indústria de produtos de origem animal, como frigoríficos e laticínios.