Na conferência global que define as ações para combater o tabagismo no mundo, realizada no começo do mês na Índia, uma das principais recomendações foi direcionada à questão mais sensível nas lavouras de fumo: o investimento em culturas alternativas.
– Não é de uma hora para outra, é difícil. Levei muito tombo tentando diversificar – relata o produtor Sérgio Frey, 54 anos, morador do interior de Venâncio Aires, no Vale do Rio Pardo.
Desde jovem plantando tabaco, o produtor sempre consorciou a produção com outras atividades – como milho e suínos –, porém sem alcançar renda suficiente para reduzir a dependência da cultura. Foi de cinco anos para cá que Frey começou a encontrar alternativas que passariam efetivamente a fazer frente à renda do fumo na propriedade com 8 hectares.
Primeiro, com a produção de ovos. Mais recentemente, com o cultivo de verduras e hortaliças. Hoje, o tabaco ocupa apenas 1,5 hectare de área e já está longe de reinar sozinho na receita da família, embora ainda tenha relevância financeira.
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– Ainda não abandonei totalmente por precisar da renda do tabaco – admite Frey, revelando que sempre sonhou em ter seu nome na sua produção.
Com a ajuda do filhos, caixinhas de ovos com a marca AvesFrey chegam hoje aos supermercados e feiras de Venâncio Aires. Desde o mês passado, ovos, verduras e hortaliças produzidos pela família passaram a ser entregues diretamente na casa dos consumidores em sacolas sob encomendas.
– É uma opção para quem não tem tempo de ir ao mercado ou à feira. É uma venda sem intermediário – conta a filha Fernanda, 28 anos, que trabalha com os pais para custear a faculdade.
A jovem faz as entregas duas vezes por semana, normalmente nos dias em que se desloca para a Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), onde cursa Administração. A tarefa é compartilhada com o irmão, que faz o mesmo no caminho da Univates, em Lajeado, onde faz Engenharia Civil. A maioria das encomendas chega pelo Facebook e pelo WhatsApp divulgado nas redes. Em um mês, as entregas diretas passaram de cem sacolas por semana.
– A gente está bem animado – conta o produtor.Quanto ao tabaco, a ideia é continuar com a cultura por mais algumas safras, até que as verduras e os ovos substituam por total a renda da propriedade. Um dos fornos de fumo já está sendo transformado numa sala para separação das hortaliças.
O caminho da diversificação, embora gradual, tende a ser cada vez mais natural no Brasil, segundo maior produtor mundial de tabaco, atrás apenas da China.
– No mercado, quando existe demanda, existe oferta. E quando a demanda vai reduzindo, em um movimento mundial de retração de consumo, é preciso que os produtores de fumo tenham consciência de que é necessário buscar alternativas – disse Vera Luiza da Costa e Silva, chefe do secretariado da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco.
Na cruzada entre o combate mundial ao tabagismo e a produção de fumo, os agricultores deverão ser apoiados financeiramente para conseguir diversificar a produção. Documento aprovado na 7ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (COP7), ocorrida na semana passada na região metropolitana de Nova Délhi, prevê que os governos destinem recursos para projetos-pilotos, levando em conta não apenas aspectos de saúde pública, mas também sociais e ambientais da atividade.
– Vamos cobrar do governo brasileiro que essa recomendação seja colocada em prática. Com tecnologia, mercado e financiamento, a diversificação certamente será facilitada – avalia Benício Werner, presidente da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra).
A Convenção-Quadro foi o primeiro tratado internacional de saúde pública ratificado pelo Brasil em 2005.
Capital nacional do tabaco reduz dependência
Maior produtor de tabaco do Brasil, Venâncio Aires já teve 85% de sua economia dependente da cultura – há duas décadas. Hoje, a produção de fumo ainda exerce forte impacto na arrecadação do município, mas a dependência foi reduzida para menos de 50%. A diversificação econômica passou pelo crescimento das indústrias dos setores metalmecânico e de refrigeração e, mais recentemente, pela criação de um polo de proteína animal.
– Nas propriedades, o processo passa pela multiprodução, consorciando o tabaco com outras atividades, como a criação de aves, suínos e gado – relata Vicente João Fin, chefe do escritório municipal da Emater em Venâncio Aires.
O sucesso da diversificação, pondera Fin, está necessariamente relacionado à existência de arranjos e cadeias produtivas que deem condições de logística e de mercado à produção.
Com frigoríficos de bovinos e de aves, Venâncio é também vizinha do Vale do Taquari – onde estão concentradas grandes indústrias de frango e suíno. Para se ter uma ideia do crescimento desse setor, em 2005 a criação de aves respondia por apenas 1,8% do valor bruto da produção agropecuária do município. No ano passado, chegou a quase 18%.
Se somadas, as produções de carne e de leite chegam quase ao mesmo peso percentual das lavouras de tabaco.
– Se as atividades são diversificadas, a economia do município fica muito mais blindada, menos suscetível às oscilações de mercado – destaca o prefeito Airton Artus (PDT), um dos incentivadores do polo de proteína animal.
Com 10 hectares no interior de Venâncio Aires, Elton Hein concentrou a renda da propriedade na produção de fumo até 2008. Na época, financiou um aviário para criação de frangos. Em 2010, veio o segundo. Neste ano, com outras duas estruturas prontas para entrar em operação, a família não plantou mais tabaco.
– A gente foi vendo que cuidando bem dos aviários era possível conseguir renda até superior ao fumo – conta Hein.
O incentivo para apostar em outra atividade veio do filho Gustavo Elias Hein, 22 anos, que se formou técnico agrícola e hoje está cursando a faculdade de Desenvolvimento Rural e Gestão Agroindustrial.
– Não foi uma imposição, mas sentia que para ele ficar na propriedade era preciso buscar outra atividade – diz Elton.
A dificuldade de encontrar mão de obra também levou a família a optar pela avicultura:
– No fumo precisava de dois a três funcionários para trabalhar, além da família. Nos aviários, somos eu, minha esposa e o filho, apenas. Sem contar que o trabalho é bem menos sacrificante, hoje não ficamos expostos no tempo – detalha Elton.
Agora, com os dois novos aviários, a família terá de contratar pelo menos um funcionário. As estruturas, que somam quase R$ 2 milhões em investimento, foram financiadas com 10 anos para pagar. Com 3,5 hectares ocupados pela avicultura, sobram 4 hectares para o plantio de soja e milho.
– Se estivéssemos na fumicultura, talvez estivéssemos na mesma, ainda – admite Elton.
Experiência catarinense
Na vizinha Santa Catarina, segundo maior produtor de tabaco do país, atrás do Rio Grande do Sul, a diversificação teve um aliado: a modernização das estufas de fumo. Com o sistema de ar forçado em 90% das propriedades, o número de pessoas envolvidas é reduzido em quase cinco vezes.
– Sobra mais tempo para outras atividades. O que faz a diferença para conseguir diversificar é a mão de obra – explica Adriano da Cunha, vice-presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Santa Catarina (Fetaesc).
Os investimentos em estufas de ar forçado (tecnologia que agiliza o enchimento da estufa e a secagem das folhas) foram incentivados pelas indústrias nos últimos oito anos, em projetos de investimento financiados pelo Programa Nacional da Agricultura Familiar (Pronaf). Embora com o mesmo estímulo, os produtores do Rio Grande do Sul apostaram menos na tecnologia, presente em apenas 30% das propriedades gaúchas.
– Os produtores muitas vezes resistem em fazer a conversão por falta de perspectiva de sucessão – completa Cunha.
Um dos casos de diversificação apresentado na COP7, na Índia, foi do Centro de Estudos e Promoção da Agricultura de Grupo (Cepagro). Eles desenvolvem projeto com cem famílias em três municípios catarinenses.
– Com a produção de hortaliças, leite e frutas, os produtores distribuem a renda ao longo dos meses, de forma paralela ao tabaco – explica Charles Lamb, coordenador-geral do Cepagro.
Atuação da indústria colocada em xeque
Com os temas mais espinhosos praticamente vencidos no Brasil, como ambiente livre de fumo, advertências sanitárias, restrições à publicidade e aumento de impostos, a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco tem como alvo agora chegar mais próximo das indústrias. Embora os assuntos que dizem respeito à fabricação e comercialização de cigarro tenham avançado pouco durante a COP7, a intenção de barrar a atuação das empresas do setor foi visível nos discursos feitos no encontro global.
Entre os propósitos, que ainda não prosperaram no mercado brasileiro, estão a restrição ao uso de aditivos no cigarro, a redução da atratividade dos produtos com a obrigação de embalagens genéricas e, ainda, a responsabilização das empresas.
– As indústrias não podem ficar apenas com o lucro. O que elas pagam de imposto não cobre os gastos com saúde pública – disse Paula Johns, diretora-executiva da Aliança de Controle do Tabagismo (ACT), que participou da conferência global como observadora.
Presidente do Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (SindiTabaco), Iro Schünke se diz surpreso com a insistência dos ataques às empresas do setor:
– Não entendemos essa aversão à indústria, um setor que atua de forma legal, gerando emprego e renda. Se é um tratado de saúde pública, deveriam focar as discussões nisso, e não em atacar as indústrias – critica Schünke, que também esteve na Índia durante a COP, mesmo sem poder participar dos debates.
O dirigente também reclama da influência exercida por Organizações Não-Governamentais (ONGs) e entidades observadoras nas delegações oficiais dos governos. Apesar do "radicalismo e combate à indústria legal", Schünke considera que a COP7 foi satisfatória principalmente pela atuação do embaixador do Brasil na Índia, Tovar da Silva Nunes, que buscou equilíbrio na posição brasileira.
Um dos pontos ainda a avançar, em opinião consensual, é em relação ao comércio ilegal de cigarro. O protocolo, assinado dentro da Convenção-Quadro, prevê a necessidade de 40 ratificações de países para ser colocado em prática. Até agora, são 29. O Brasil assinou o protocolo, porém ainda não o aprovou no Congresso Nacional. A estrutura do país para combate ao contrabando, especialmente de produtos vindos do Paraguai, é considerada falha.
Principais recomendações da COP7
Durante seis dias, delegações oficiais de mais de 140 países definiram recomendações a serem adotadas pelos países signatários da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, como o Brasil. Confira os principais encaminhamentos:
Alternativas economicamente sustentáveis
Alternativas ao cultivo do tabaco por parte dos governos, com a previsão de recursos para projetos-pilotos, levando em conta não apenas aspectos de saúde pública, mas também sociais e ambientais da atividade. Além disso, recomendação às nações que não cultivam o tabaco a não iniciarem a atividade.
Interferência da indústria
Intensificação das ações multissetoriais e de cooperação para conter estratégias da indústria para minar ou subverter o controle do tabaco. Apelo aos países para que mantenham vigilância à atuação da indústria no processo de implementação do tratado internacional.
Cigarros eletrônicos
A COP7 recomenda aos países que ainda não regularam a importação, venda e distribuição de cigarros eletrônicos e sistemas de liberação de nicotina que considerem a possibilidade de proibir o uso desses produtos. As partes solicitaram investigação cientificamente fundamentada para determinar o impacto global da saúde e os riscos a longo prazo.
Responsabilidade
Incentivo aos países a considerar medidas, incluindo mudanças na legislação ou procedimentos, para responsabilizar as indústrias pelos danos causados pelo consumo de tabaco. Estímulo às nações para aumentarem a cooperação internacional a fim de fortalecer a implementação do artigo 19, que trata de responsabilidades.
Estratégias de controle do tabagismo
As nações solicitaram mais pesquisas sobre o tabagismo, além de suas consequências entre meninas e mulheres, bem como meninos e homens, com atenção especial aos grupos vulneráveis, com relação aos determinantes sociais da saúde.
Cooperação internacional e direitos humanos
Os países reconhecem que o controle do tabagismo está relacionado a uma série de metas de desenvolvimento sustentável, incluindo meio ambiente e direitos humanos. Reforço às relações de tratados com outros organismos e marcos internacionais, promovendo sinergias com objetivos globais de saúde pública.