O hábito de observar o calendário astronômico agrícola durante o manejo da cultura é uma prática antiga que vem sendo resgatada por agricultores gaúchos. O movimento é mais forte na viticultura, na qual os produtores têm buscado o equilíbrio da produção por meio da agricultura biodinâmica. Preocupados com a sustentabilidade, os produtores de uva abrem mão do uso de químicos e apostam na aplicação de preparados feitos à base de resíduos vegetais, animais e minerais que reativam as forças vitais da natureza.
A reportagem do Campo e Lavoura acompanhou de perto como funciona o manejo biodinâmico em visita à propriedade da vinícola Don Giovanni, de Pinto Bandeira, que está em processo de conversão dos vinhedos. O dia 8 de outubro, data em que a lua entrou em posição ascendente, foi marcado pela elaboração do preparado feito de esterco fresco de vacas em lactação. O composto orgânico, enterrado havia seis meses dentro de 16 chifres, foi desenterrado e diluído em água para aplicação nas plantas.
O agrônomo Jefferson Sancineto Nunes, consultor da vinícola Don Giovanni e entusiasta da agricultura biodinâmica, explica que o uso do chifre de vaca como recipiente para depositar o esterco ocorre porque seu formato ajuda a "preservar a energia" por ter um orifício menor do que o de touro, que é totalmente oco. Em seu lugar poderia ser utilizado casco de animais.
– Buscamos, com isso, aumentar a vitalidade do solo e melhorar a fertilidade – detalha Nunes.
No caso do preparado chifre-esterco, enterrado no outono e desenterrado na primavera, o cuidado é direcionado ao solo e às raízes das plantas, ampliando a vitalidade e o equilíbrio, e favorecendo a brotação. A recomendação é aplicar duas vezes ao ano. Já o preparado chifre-sílica, feito à base de cristais de quartzo, é enterrado no verão e desenterrado no outono. Este último tem como função intensificar os efeitos da luz solar e deve ser aplicado nos parreirais pelo menos cinco vezes ao longo da safra.
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Ervas medicinais substituem químicos
A agricultura biodinâmica contempla ainda outros preparados à base de plantas medicinais como urtiga, para combater pulgão; cavalinha, utilizada para evitar fungos; mil-folhas, para potencializar o potássio e o enxofre; e casca de carvalho, que contém cálcio e tanino.
Outra prática é a diversificação dos cultivos. Em meio ao vinhedo, é possível encontrar trevo-branco, que serve para ajudar as plantas a fixarem nitrogênio naturalmente, azevém e aveia-preta, que funcionam como adubo e estimulam a atividade biológica do solo. Entre os resultados que já podem ser percebidos, relata o agrônomo, está a maior espessura da folha e da casca da uva, características que tornam a planta mais resistente às intempéries.
Maior expressão em aroma e sabor
A conversão de vinhedos para a biodinâmica ocorre de forma gradual. Na Don Giovanni, o processo começou há três anos em um hectare, onde são cultivadas as variedades chardonnay e pinot noir. A expectativa é concluir a transição dos 13,7 hectares de vinhedo em até cinco anos, estima o agrônomo. No restante da área, o uso de fungicidas e herbicidas está sendo reduzido aos poucos.
– A uva biodinâmica resulta em vinhos e espumantes mais expressivos em aroma e sabor – destaca o enólogo Maciel Ampese, ressaltando que o processo de acúmulo de açúcares é diferenciado em relação ao cultivo tradicional, o que ajuda a acentuar o terroir do vinho, ou seja, as características determinadas pelo solo e clima de uma região.
Com produtividade média de 6,3 toneladas de uva por hectare, a produção anual da vinícola é destinada à fabricação de 40 mil litros de espumante e 10 mil litros de vinho. Por meio do cultivo biodinâmico, a perspectiva é manter o rendimento e agregar valor à produção.
– O futuro é a preservação da saúde, e a agricultura precisa passar por este caminho mais puro. Quem entender isso mais rápido estará um passo à frente – avalia o produtor Ayrton Giovannini, que trabalha com a produção de uvas desde 1960.
Cuidado em não esgotar a planta
Diferentemente da agricultura convencional, que trata a planta de forma isolada, a biodinâmica considera o ambiente. O método valoriza o conceito de organismo agrícola, pelo qual há interação entre o solo, as plantas, os animais e o homem. Enquanto os pássaros dão mais astralidade ao ambiente, as ovelhas ajudam a controlar o crescimento das gramíneas e as vacas contribuem com esterco usado no preparado. Esta visão holística da propriedade é um dos pilares da biodinâmica.
– A biodinâmica não considera explorar ao máximo o potencial produtivo da planta – destaca o agrônomo Lucas Garrido, pesquisador da Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, acrescentando que o princípio visa não esgotar a planta.
Só no Rio Grande do Sul, há pelo menos 80 produtores apostando na conversão do vinhedo, segundo dados da Associação Biodinâmica (ABD). O interesse surgiu há uma década, porém o movimento é mais forte nos últimos dois anos, avalia o agrônomo João Volkmann, diretor da ABD. A adversidade climática é um dos fatores que estimula o crescimento do método.
– O ambiente deixa de receber carga de produtos tóxicos e a planta passa a ter uma resiliência maior – conta Volkmann.
Em busca de multiplicadores
No último final de semana, seis viticultores e três técnicos ligados a um projeto de assistência técnica do Instituto Brasileiro do Vinho (Ibravin) e da Federação das Cooperativas Vinícolas do Rio Grande do Sul (Fecovinho) estiveram no Chile conhecendo vinhedos e vinícolas biodinâmicos. A comitiva também participou do Encontro Latino-Americano de Agricultura Biodinâmica. Além de qualificar a produção, o objetivo da parceria é formar multiplicadores do método.
– O que motiva estes produtores é a crescente procura por vinhos de alta identidade e valor agregado. Hoje, os grandes vinhos do mundo são biodinâmicos – ressalta o tecnólogo em viticultura e enologia Leandro Venturin, coordenador do Centro Ecológico Ipê, que atua na região da Serra e presta consultoria ao projeto.
CURIOSIDADES
– A agricultura biodinâmica surgiu na Alemanha, em 1924, e é uma das vertentes do cultivo orgânico. O método é utilizado em vinhedos da França há pelo menos seis décadas. Também há cultivo biodinâmico nos Estados Unidos, Suíça, Austrália e Chile.
– No Brasil, o movimento surgiu na década de 1970, em Botucatu (SP). No Rio Grande do Sul, a biodinâmica começou há três décadas, em Sentinela do Sul, na propriedade de João Volkmann, que cultiva arroz.
– Na lua ascendente, que simula as estações primavera e verão, é quando a seiva está circulando de forma mais concentrada na parte aérea da planta. O período é ideal para colheita, enxertia e aplicação dos tratamentos. O ciclo se iniciou no dia 8 e vai até o dia 21 de outubro.
– Nos períodos de lua descendente, que simula as estações outono e inverno, a seiva está concentrada na raiz das plantas. A época é ideal para plantio, poda, desfolha e outras práticas de manejo.