Com a passagem de um dos eventos climáticos mais preocupantes dos últimos tempos pelo Rio Grande do Sul, a tempestade subtropical Yakecan, na semana passada, evidenciou-se a precariedade de equipamentos para monitorar indicadores que permitem o acompanhamento mais preciso desses fenômenos e a emissão de alertas.
Referência oficial para parâmetros do clima no Brasil e no Exterior, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), ligado ao Ministério da Agricultura, Agropecuária e Abastecimento, contabiliza, no Estado, 81 estações automáticas. Das cinco posicionadas no Litoral — Torres, Tramandaí, Rio Grande, Santa Vitória do Palmar (localizada na Barra do Chuí) e Mostardas —, duas não estavam operando enquanto a tempestade se aproximava e nos momentos mais críticos: a da Barra do Chuí e a de Mostardas, no Litoral Médio, uma das regiões mais atingidas pelas fortes rajadas da Yakecan.
Resultado: meteorologistas ficaram “no escuro” pela falta de dados do Chuí e só conseguiram verificar a velocidade das rajadas na estação de Rio Grande, quando a tempestade já havia avançado 200 quilômetros pelo sul do Estado. O Inmet não confirma nem descarta que os problemas tenham comprometido o monitoramento da tempestade Yakecan.
Estações meteorológicas automáticas são aparelhos que medem temperaturas mínima e máxima, umidade relativa do ar, pressão atmosférica, velocidade do vento, volume de chuva e radiação, de hora em hora. Os dados são acessados remotamente, por computador, e disponibilizados para consulta pública. Outras 14 estações do Inmet no Rio Grande do Sul são convencionais, que dependem de um observador para coleta dos dados. No total, são 95 aparelhos. Fora os equipamentos da costa, outras unidades apresentam problemas, o que também afeta as atividades, uma vez que é preciso observar uma área maior do que aquela que está na rota de uma tempestade como a Yakecan, por exemplo.
De acordo com os registros do Inmet, a estação da Barra do Chuí está intermitente desde novembro de 2021. Meteorologistas, por outro lado, afirmam não poder contar com ela. A de Mostardas emitiu as últimas informações em 12 de abril. Os dados são aferidos, mas não transmitidos — ou seja, as medições não se perdem, podendo abastecer o banco de dados futuramente. Entretanto, não servem para utilização no dia a dia enquanto as unidades não passarem por conserto.
Algumas deixam de funcionar por um ou dois dias e voltam, mas a maioria depende de visita técnica de servidores do Inmet para limpeza, troca de bateria ou sensores queimados, por exemplo. Os equipamentos da orla são muito danificados pela ação da maresia.
Em levantamento realizado nesta quarta-feira (26), a meteorologista Eliana Klering, professora da Faculdade de Meteorologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), atestou que 35% das estações automáticas no território gaúcho estavam inoperantes ou funcionando apenas parcialmente.
Por que os dados são importantes?
A falta desses dados fica mais evidente quando ocorre um evento de grandes proporções, mas a emissão de informações também é sentida na rotina. No caso da tempestade Yakecan, especialistas se socorreram de estações localizadas no Uruguai e de imagens de satélite — estas com o prejuízo da defasagem de tempo. Se a estação da Barra do Chuí estivesse funcionando, teria sido possível acompanhar os dados em tempo real.
Eliana explica que os modelos numéricos de previsão do tempo, utilizados para projetar condições futuras, são iniciados com os dados das estações automáticas.
— Para prever o futuro, você tem que conhecer o passado. Tem que ter aquela fotografia inicial da atmosfera, possibilitada pelas estações automáticas, além de outros dados. Precisamos da foto da região inteira, da rota do ciclone. Não fazemos pedacinho por pedacinho. Normalmente, as condições iniciais de um determinado modelo abrangem uma região muito maior — fala Eliana, indicando por que as avarias em estações de outros pontos do Estado também dificultam o trabalho.
Faz parte do acompanhamento de um sistema meteorológico monitorar o que vem acontecendo com ele, diz a meteorologista da UFPel. Sem o aparelho da Barra do Chuí, a equipe consultou estações do Uruguai e imagens de satélite.
— O primeiro dado que conseguimos, efetivamente medido, foi em Rio Grande, a quase 200 quilômetros do Chuí. Nosso litoral tem 620 quilômetros de extensão, mais ou menos, e cinco estações, duas delas não funcionando, sendo que a de Tramandaí não tem medida de vento e estava com o sinal oscilante. Conseguimos (os dados de) Rio Grande e Torres — recorda Eliana.
— Fizeram falta, sim, para o monitoramento, as estações de Chuí e Mostardas — resume.
Carine Gama, meteorologista da Climatempo, uma de tantas empresas que distribuem os dados gerados pelo Inmet, observa que estações com problemas sempre atrapalham o trabalho, uma vez que o Brasil não dispõe de muitas, o que restringe a abrangência de dados armazenados.
— Na semana passada, Mostardas teve rajadas de vento muito fortes, muito intensas. Estações meteorológicas para consulta sempre são necessárias — constata Carine.
Manutenção permanente é desafio
A manutenção desses equipamentos deve ser permanente, um desafio superlativo para o instituto que cobre um país de tamanho continental como o Brasil. O Inmet está dividido em 10 distritos de meteorologia e dispõe de 11 equipes (duplas) de manutenção — nos 10 distritos mais o Distrito Federal — para dar conta de tudo. O país soma mais de 740 estações, entre automáticas e convencionais. Em média, são realizadas 60 manutenções por mês.
Leonardo Zaidan de Melo, coordenador-geral de Sistemas de Comunicação e Informação do Inmet, admite dificuldades de ordem orçamentária e afirma que há visitas previstas às estações com problemas no litoral do Rio Grande do Sul no mês que vem — mas o conserto pode demorar mais.
— Mostardas e Chuí estão no planejamento para junho. Já está planejada a rota. Serviço público é um pouco burocrático. Tem que fazer planejamento, solicitar diárias, passagens. É uma meta da nossa direção deixar tudo funcionando até, no mais tardar, julho ou agosto — diz Melo.
A aquisição de 15 novos automóveis pelo instituto deve melhorar os serviços e acelerar o cumprimento das rotas. Os veículos devem ser entregues até o final de maio. Dois deles serão destinados ao 8º Distrito de Meteorologia, em Porto Alegre.
— Por conta da pandemia, passamos um tempo sem fazer as viagens. Servidores acima de 60 anos, com comorbidades, não podiam trabalhar. Como não tinham como fazer trabalho remoto, acumulou — justifica Melo.
Diretor da Faculdade de Meteorologia da UFPel, Fabrício Pereira Härter, ao comentar a falta de investimento, traça um paralelo com a prática médica: o sucesso do prognóstico depende muito do diagnóstico.
— Na passagem desses sistemas meteorológicos, a primeira coisa é tentar fazer um bom diagnóstico para se conseguir um bom prognóstico. Observamos, nas estações, o que está acontecendo naquele momento para tentar ver o que vai acontecer à frente — diz Melo, corroborando Eliana.
Quanto menor a quantidade de informações da qual se parte, maior poderá ser o comprometimento da qualidade do trabalho sobre o que está por chegar.
— Pequenas variações nas condições iniciais podem nos levar a uma previsibilidade completamente diferente — comenta o diretor da faculdade.
— Essa deficiência no diagnóstico causada pelos poucos dados, com o sucateamento da nossa rede de observações, tem impacto direto no monitoramento e na previsão do tempo sobre o nosso Estado. Isso terá efeitos na safra agrícola, na geração de energia, na distribuição de seguros, como o agrícola — complementa.
No momento, 300 servidores concursados compõem o quadro funcional do Inmet — em 2009, o total era de cerca de 600. Mais da metade, segundo o coordenador-geral, estão no chamado abono permanência, com tempo de carreira suficiente para se aposentar e desfalcar ainda mais a equipe. O Inmet solicitou, ao Ministério da Economia, autorização para organizar um concurso público e preencher 147 vagas. Não se sabe, ainda, se será possível realizar a seleção de novos profissionais.
Questionado por GZH se as duas estações automáticas com problemas comprometeram o monitoramento da tempestade Yakecan no Rio Grande do Sul, Melo informou, de início, que não, mas, em seguida, preferiu questionar, diretamente, os meteorologistas da instituição. A resposta seria encaminhada a GZH até a última segunda-feira (23). Sem retorno, o pedido foi refeito ao órgão do governo federal duas vezes. Até o fechamento desta reportagem, o posicionamento não havia sido informado.