Uma inédita onda de calor na Antártica, com o termômetro subindo quase 40 graus acima da média na época em que o Hemisfério Sul se despede do verão, fez climatologistas e ambientalistas voltarem seus olhares com preocupação para o continente mais gelado do mundo.
No dia 18 de março, a estação Concórdia, uma base de pesquisa situada na Antártica Oriental, marcou -11,5°C, quando o esperado para esse período do ano seria de -50ºC. Apesar de ainda ser frio intenso, foi uma temperatura recorde, com o agravante de ter ocorrido em uma região extremamente seca, tida como a mais fria do planeta Terra, chamada de Platô Antártico.
Segundo o climatologista Francisco Eliseu Aquino, diretor substituto do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é comum que ondas de calor cheguem até o continente de gelo. Geralmente, isso ocorre em janeiro, pico do verão no Hemisfério Sul, e atinge a península da Antártica, mais próxima do extremo sul da América do Sul, o Ushuaia. Quando se soube que os 40 graus a mais foram registrados no Platô Antártico, um lugar inóspito pela sua inacessibilidade, o espanto entre os cientistas polares foi geral.
—Lá na Antártica, só existe duas estações, basicamente: verão e inverno. Por isso, uma onda de calor até poderia acontecer em janeiro, mas não quando estamos mergulhando no inverno (em março). E esse registro na estação Concórdia é ainda mais curioso, porque é uma área situada a mais de três mil metros de altitude, excepcionalmente isolada, onde eventos dessa magnitude nunca tinham ocorrido. Isso nos surpreendeu — diz Aquino, apelidado de Chico Geleira por já ter pisado na Antártica 18 vezes.
Para o glaciólogo Jefferson Simões, professor de Glaciologia e Geografia Polar da UFRGS e pioneiro dos estudos glaciais no Brasil, esse calorão inesperado pode estar relacionado à diminuição da cobertura de gelo marinho no entorno da Antártica. Isso porque, quanto mais o mar perde sua cobertura de gelo, mais energia solar é absorvida em determinada região.
Esse fenômeno já vem ocorrendo no oceano Ártico, no Hemisfério Norte, e foi comprovado que tem ligação com o aquecimento global.
— Na Antártica, até cinco anos atrás, não tínhamos evidência de que o mar congelado estivesse diminuindo, mas começou a diminuir, e isso pode estar facilitando a penetração de massas de ar quente no continente — estima Simões.
Pouco depois do calorão que entrou para a história, um outro evento aumentou a apreensão: no dia 25 de março, parte da plataforma de gelo Conger se desprendeu da Antártica, na mesma região do Platô, o que passou a sensação de que o continente está derretendo.
Mas não se pode afirmar que os dois episódios tenham relação direta entre si, ressalva Aquino. Ou seja, o calorão no ponto mais frio do planeta não foi responsável pelo desprendimento de um gelo da plataforma, embora as duas situações sejam resultado de intensas mudanças climáticas provocadas pela ação humana, como o aquecimento global.
— Ambos são decorrentes de mudanças climáticas, sem dúvidas. Mas o desprendimento da plataforma de gelo é um processo contínuo, que leva anos. É claro que a gente se impressiona quando lê as duas notícias, uma atrás da outra, mas, no meu ponto de vista, foram duas coincidências que ocorreram dentro de uma semana. E as duas alertam que as mudanças climáticas estão intensificadas — reforça.
Reflexos
Ao que tudo indica, a temperatura média da Antártica vem crescendo rapidamente, segundo aponta o biólogo Nelson Fontoura, do Instituto do Meio Ambiente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). É um aumento de 0,1°C a cada 10 anos, o que vem sendo observado desde a década de 1950.
Parece um aquecimento lento, mas não é. De acordo com o professor, é necessário voltar ao passado para entender. Há 22 mil anos, toda a metade norte da América do Norte, da Europa e Ásia eram congelados, período chamado de glaciação. Mas, deste então ocorreu um aquecimento gradual e, há cinco mil anos, as temperaturas eram até mais quentes do que hoje.
Entre o período da glaciação até esse considerado mais quente, a temperatura do globo subiu seis graus. O detalhe é que levou 17 mil anos para essa mudança acontecer.
— Foram seis graus em 17 mil anos. Se dividirmos esses seis graus por 17 mil anos, e compararmos com esse aquecimento de 0,1 graus a cada década na Antártica, esse aquecimento mais recente é 25 vezes mais rápido — frisa Fontoura.
Episódios extremos
Responsável por 90% do gelo que existe no mundo, a Antártica é considerada o principal regulador da temperatura do planeta Terra. Por isso, observa Aquino, um recorde de calor no lugar mais frio do mundo é sinal de que o restante do planeta também enfrentará episódios extremos.
— Tem uma frase que sempre digo: o que acontece na Antártica não fica lá. Um lugar isolado da terra como esse viveu uma onda de calor que nos diz: é a mudança climática atuando. Se isso ocorre na Antártica, a gente tem que esperar que eventos extremos na região da Bacia do Prata sejam mais frequentes e intensos — diz o climatologista.
Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina devem ter invernos mais quentes, maior concentração das chuvas — com longos períodos sem precipitações e curtos períodos de chuva intensa —, além de fortes temporais e severa estiagem, apontam os especialistas.
Para controlar a ameaça que paira em torno da regiões polares do mundo, diz o glaciólogo Jefferson Simões, a saída é só uma: frear o aquecimento global.
— Temos que diminuir a emissão de gases de efeito estufa. Se a temperatura média do planeta aumentar mais de dois graus, a tendência é que o mar congelado no Ártico, por exemplo, desapareça totalmente — finaliza Simões.