Os 4 milhões de habitantes da Cidade do Cabo, segunda maior cidade da África do Sul, podem viver dentro de poucos meses um cenário jamais visto em uma metrópole moderna. Ainda neste semestre, correm o risco de ficar sem uma gota de água saindo de suas torneiras. A situação está preocupante a ponto de o governo impor, desde 1º de fevereiro, um racionamento de 50 litros diários de água por pessoa, o equivalente a um banho de cinco minutos – quem ultrapassar o limite paga uma multa pesadíssima. Aliás, irrigar a grama, lavar o carro ou encher uma piscina está proibido.
As seis barragens que abastecem a cidade, somadas, estão com apenas 24,4% do volume. Se o nível cair a 13,5%, o governo instituirá o Dia Zero, quando nenhuma água sairá das torneiras de residências ou empresas até o inverno, a estação de chuva (serviços essenciais, como hospitais, não sofrerão corte). A última projeção é de que isso aconteça em 4 de junho. A partir daí, será necessário dirigir-se a um dos 200 pontos de distribuição controlados por forças de segurança para receber 25 litros de água por pessoa diariamente. E as ruas estarão repletas de policiais e militares para impedir roubos e saques.
Uma série de medidas foi imposta para evitar esse cenário na cidade conhecida pelas praias ao estilo Rio de Janeiro. Agricultores devem reduzir em 60% o consumo de água em relação ao mesmo período de 2015. Empresas, em 45%. Algumas regiões da cidade já sofrem cortes em um sistema de rodízio. Campanhas solicitam evitar o uso da descarga do vaso sanitário e aconselham o álcool em gel na higiene das mãos. Enquanto isso, galões de água tornam-se raros em mercados.
— Onde tu fores, terá uma mensagem para economizar água. O povo está meio assustado com o Dia Zero. Acho que a cidade vai entrar em colapso se fecharem as torneiras. Há até empresas que ameaçam sair da cidade. Mas as pessoas estão repensando sua relação com a água — diz o psicólogo porto-alegrense Lucas Costa, 28 anos, morador da Cidade do Cabo desde 2016.
O professor e empreendedor paulistano Eduardo Shimahara, 46 anos, enfrenta o racionamento ao lado da esposa, a bióloga marinha Tatiana, 29, e dos filhos Zoe, nove, e Elliot, um ano e nove meses. A rotina é puxada: os quatro tentam tomar um banho a cada dois dias. Até a alimentação é impactada: em vez de cozinhar macarrão em uma panela que gasta três litros de água, a família dá preferência a assados na churrasqueira.
— Hoje, a gente só dá descarga no vaso com a água que sobrou do banho e a que saiu da máquina de lavar, e só no número 2. Máquina de lavar, só usamos uma vez por semana. Usamos a mesma roupa várias vezes. Quero acreditar que o Dia Zero não vai chegar, mas a coisa pode ficar muito feia aqui — reflete Eduardo.
Máquina de lavar, só usamos uma vez por semana. Usamos a mesma roupa várias vezes.
EDUARDO SHIMAHARA
Professor e empreendedor
Bernelle Verster, pesquisadora do Instituto Future Water, ligado à Universidade da Cidade do Cabo, elenca três motivos para a falta de água. O primeiro é a fraca intensidade de chuva nos últimos três invernos. O segundo é o crescimento populacional da cidade – o número dobrou em 30 anos, o que pressionou a demanda por água. Por último, o enriquecimento da população, que também elevou o consumo.
— As previsões feitas pelo governo não anteviram o tamanho da seca. As políticas ambientais deram conta de secas severas, mas esta foi muito pior do que todos estavam preparados. Nossas classes média e alta desperdiçavam muita água, não poupavam até que a situação se tornou urgente — afirma Bernelle.
Se você acha o problema algo de outra realidade, pense duas vezes. Analistas avaliam que o cenário não é tão distante do Brasil (leia mais aqui).
Uma crise hídrica ao sabor de desafetos políticos
A jornalista Anita Visser, apresentadora do Monitor, programa diário falado na língua africâner acompanhado por 1,5 milhão de pessoas na rádio RSG, acrescenta outro componente desestabilizador: embate político.
A província de Western Cape, à qual pertence a Cidade do Cabo, é a única do país administrada pela Aliança Democrática (AD), partido liberal que é a principal oposição ao Congresso Nacional Africano (ANC) – esta, por sua vez, é a legenda do ex-presidente Nelson Mandela e do recém-empossado presidente, Cyril Ramaphosa. O diálogo entre as siglas não é dos melhores e tampouco foi facilitado na falta de água. Enquanto isso, a prefeita da Cidade do Cabo, Patricia de Lille (AD), é investigada por corrupção e pode ser afastada do cargo. Agora, dada a gravidade da crise hídrica, quem gere o problema é a premiê (governadora) de Western Cape, Helen Zille (AD), para quem o desafio é maior do que a Segunda Guerra ou o pós-11 de setembro.
— Há uma questão política muito forte. A premiê da Província de Western Cape afirma que não recebe ajuda financeira nacional suficiente. Enquanto isso, o ANC diz que o governo da Província deveria ter se preparado para a seca — afirma Anita.
Há uma busca por soluções, para além do racionamento e da torcida pela chuva. A responsabilidade dos recursos hídricos é do governo nacional, mas são os municípios que ficam a cargo de administrar a água no dia a dia. No ano passado, o governo criou usinas de dessalinização de água do mar. Há também investimentos em reutilização da água para serviços domésticos, busca por poços artesianos e conserto de encanamentos com vazamento.
Curiosidades
*A média de chuva anual na Cidade do Cabo é de 490 mm – metade da média mundial e cerca de um terço da média da cidade de São Paulo, onde chove cerca de 1.500 mm ao longo do ano.
*Enquanto isso, o consumo de água na Cidade do Cabo era de 235 litros por pessoa diariamente, antes do racionamento – a média mundial per capita é de 173 litros diários.
*Atualmente, a população da Cidade do Cabo deve consumir 50 litros por dia (per capita) sob pena de multa.
*Colaborou Larissa Roso