A construção de um dos pedágios da BR-386, previsto no contrato que concedeu quatro trechos de rodovias federais à empresa paulista CCR, mudou a rotina de uma comunidade do interior de Montenegro, no Vale do Caí. Cerca de 200 famílias que vivem na Volta do Anacleto (km 426) deverão perder um dos acessos que liga a localidade à estrada federal. A rua tem previsão de ser bloqueada permanentemente pela concessionária.
— A gente pensa que a comunidade vai progredir e aí vem um pedágio, fecha nosso acesso e tudo regride — reclama a aposentada Cleci Quadros Amorim, 71 anos, filha de um dos donos da propriedade cedida à prefeitura, há 35 anos, para abertura da estrada vicinal.
O trancamento da passagem deve-se à distância das futuras cabines de cobrança, de acordo com a CCR. A rua está a 100 metros de onde ficarão as cancelas, o que não é permitido pelo Departamento Nacional de Infraestrutura (Dnit), pois configura uma possível rota de fuga do pedágio. Já os moradores argumentam que, por se localizar após o pedágio, o acesso não teria a finalidade de ludibriar o pagamento, pois não faz o contorno das cancelas de pagamento.
Com o avanço da construção da praça de cobrança — prevista para ser inaugurada em fevereiro de 2020 —, os moradores passaram a fazer protestos no canteiro de obras. Portando bandeiras coloridas e uma lona com os dizeres "Comunidade Volta do Anacleto clama por seu direito de ir e vir. Não ao fechamento de nosso acesso", cerca de 20 pessoas se manifestavam no acostamento da rodovia nesta quarta-feira (9).
A nova entrada obrigatória aumenta o trajeto em 10 quilômetros: três quilômetros percorridos pela BR-386 e outros sete por dentro do bairro.
— Hoje eu ando um quilômetro e meio e tô na rodovia. Se fechar ali (aponta para o acesso), vou aumentar em meia hora meu trajeto, sem contar que o outro lado alaga muito — conta a comerciante Terezinha Azevedo Oliveira, 63 anos, nascida e criada na região.
Terezinha faz a viagem Montenegro-Porto Alegre ao menos duas vezes por dia para abastecer seu armazém, o único na localidade, e que é responsável por metade de sua renda mensal. Há 30 anos no mesmo endereço, a dona da venda afirma que se a estrada atual, bem conservada, virar o que ela chama de "beco", fechará o comércio.
— Vai virar um beco sem saída a minha parte. Como é que eu vou fechar o armazém ao meio-dia e reabrir às duas da tarde? Minha (camionete) Fiorino atola no barro se estiver carregada — reclama.
Acesso secundário é esburacado e alagadiço
O uso obrigatório da estrada que homenageia um velho morador — o agricultor e pecuarista Pedro Otto Ost, já falecido — desagrada a comunidade. Nos sete quilômetros, ela apresenta uma sequências de buracos alagados pela chuva que atingiu o RS na última semana. Em alguns pontos, os carros menores raspam o assoalho ou têm dificuldade para cruzar, com risco evidente de atolamento. O dono de uma empresa que aluga veículos para escavação teme que a via não suporte o peso de seu caminhão.
Uma possível desvalorização dos terrenos aflige Veronice Maia, 37 anos, que, antes mesmo da definição do fechamento do acesso, comprou um apartamento em Canoas, na Região Metropolitana. A ideia de sair do interior do município não agrada a mãe, Helena Maia, 64, que vive nos fundos de sua casa:
— Eu gosto de mexer na terra, não fico um dia naquele apartamento — conta, com as mãos sujas de barro, enquanto planta flores ao lado da pequena horta.
O aposentado Firmino Campos, 70 anos, critica o projeto:
— Não tinha como ver que tem uma rua aqui, antes de instalar o pedágio? — questiona, sobre a rua aberta em 1984.
De acordo com a CCR, os locais das praças já estavam definidos no edital de licitação. Em nota, a concessionária afirma que "está aberta ao diálogo e mantém proposta feita em audiência pública de 9 de agosto, de receber uma comissão de representantes da comunidade para continuar discutindo o tema". Não há, ainda, data para o fechamento do acesso, "pois o assunto ainda está sendo avaliado", finaliza o comunicado.
Especialista defende solução para comunidade
Ex-diretor da Agência Nacional de Transportes (ANTT), o professor de engenharia da UFRGS Luiz Afonso Senna retira da concessionária a responsabilidade pelo local da instalação do pedágio:
— Ela só executa, cumpre ordens. Quem tem que dar explicações sobre a concessão é o poder concedente, o governo federal.
Especialista em transportes, Senna relembra que foram feitas audiências com os moradores da rodovia nos trechos onde quatro pedágios serão construídos. Porém, ele defende que há de se encontrar uma solução que vise o bem estar da sociedade.
— Não se pode acabar com a vida das pessoas que vivem ali. Em tese, se tiver uma possibilidade de desapropriar um pedaço de terreno que atenda as exigências e não seja tão ruim para os moradores, pode ser uma saída. Outra solução seria cadastrar os veículos, com um chip, por exemplo, e liberar a passagem só para moradores — sugere.
Prefeitura estuda solução e admite má conservação de via
O prefeito de Montenegro, Kadu Müller, afirma manter interlocução junto à CCR para achar uma alternativa. A construção de um outro acesso também é uma possibilidade estudada pelo Executivo.
— Já pedimos levantamento junto à Secretaria do Meio Ambiente para analisar os impactos de se abrir uma via lateral à rodovia — avalia.
Müller admite que a estrada alternativa precisa de melhorias e promete investimentos ainda esse mês:
— Temos quase 700 quilômetros de vias no interior do município e não é fácil mantê-las. A Volta do Anacleto vai receber saibro e terá trabalho de máquinas o mais breve possível, agora que parou de chover.
Procurada, a ANTT respondeu que o local do pedágio foi definido após estudo da Empresa de Planejamento e Logística (EPL), empresa pública que opera junto ao Ministério da Infraestrutura. Os órgãos foram questionados sobre os estudos, mas ainda não responderam quais os critérios adotados para escolha do ponto de instalação da praça de cobrança.