A decisão do governo federal de suspender o uso de dados pessoais pela empresa Meta para treinamento de sistemas de inteligência artificial (IA) reacendeu o debate sobre a segurança das informações publicadas em plataformas digitais. Na visão de especialistas, a medida preventiva emitida pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) tem como objetivo proteger a população brasileira e é importante justamente trazer o assunto à tona.
O despacho com a decisão do órgão foi publicado no Diário Oficial da União (DOU) de terça-feira (2). O documento determina que seja suspensa imediatamente no Brasil a vigência da nova política de privacidade da empresa, que autoriza o uso de dados pessoais em suas plataformas (como Facebook, Instagram e Messenger) para fins de treinamento de sistemas de IA, bem como o tratamento de dados pessoais para essa finalidade. Também estabelece uma multa de R$ 50 mil por dia de descumprimento, “em virtude do risco iminente de dano grave e irreparável ou de difícil reparação aos direitos fundamentais dos titulares afetados”.
A determinação da ANPD se refere à atualização da política de privacidade da Meta que entrou em vigor em 26 de junho, permitindo que a big tech utilize informações publicamente disponíveis e conteúdos compartilhados por usuários de suas plataformas para treinamento e aperfeiçoamento de sistemas de IA generativa. De acordo com o órgão, o processo de fiscalização foi instaurado em função de indícios de violações à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Em nota, a ANPD informou que, para a suspensão entrar em vigor, a Meta precisa ser formalmente intimada sobre a decisão. Essa intimação já foi expedida e está no prazo de ser considerada válida — com a validação, a interrupção da política passa a valer imediatamente. De acordo com o despacho, o cumprimento da medida preventiva deve ser demonstrado pela empresa à coordenação-geral de fiscalização, em até cinco dias úteis, contados a partir da intimação.
Advogado e coordenador do curso de pós-graduação em Direito Digital da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP), Juliano Madalena ressalta que não existe inteligência artificial sem o tratamento de dados e que o modelo chamado de generativa tem como objetivo criar conteúdos, como imagens, vídeos e informações. Portanto, utiliza uma grande quantidade de dados.
— Por um lado, temos o desenvolvimento científico e tecnológico, que depende do uso de dados. E, por outro, temos a LGPD, que é um microssistema que tem uma racionalidade própria de proteção, tendo como objetivo proteger o titular dos dados — resume o especialista, que também é presidente da Comissão Especial de Proteção de Dados e Privacidade da OAB/RS.
Para Rodrigo Espíndola, encarregado pela proteção de dados pessoais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), a medida da ANPD visa proteger a população brasileira de um uso de dados que ainda não parece adequado e poderia causar danos irreparáveis. Ou seja, não significa uma proibição permanente, mas sim uma determinação para pausar esse tipo de coleta e tratamento de informações.
Se a ANPD não tivesse tomado essa decisão, talvez muitas pessoas nem soubessem dessa mudança na política de privacidade. Então, é uma contribuição para a sociedade.
RODRIGO ESPÍNDOLA
Encarregado pela proteção de dados pessoais da PUCRS
— A medida determinou a suspensão da vigência da nova política de privacidade, que deixará de ser válida no Brasil. Isso não implica diretamente na proibição da empresa continuar com suas operações ou com a coleta de dados. Só torna irregular qualquer uso desses dados para fins de treinamento de inteligência artificial, até que a causa seja analisada e se chegue a uma decisão permanente ou até que a Meta faça uma nova redação de políticas, adequando esse tratamento de dados — esclarece.
Espíndola também considera a decisão da ANPD válida para fomentar as discussões e reflexões da sociedade sobre esse uso de dados, que é muito recente e ainda não teve seus riscos mapeados:
— Se a ANPD não tivesse tomado essa decisão, talvez muitas pessoas nem soubessem dessa mudança na política de privacidade. Então, é uma contribuição para a sociedade. Mas há quem veja como um entrave para o desenvolvimento e avanço da tecnologia e da inovação.
Conforme Juliano Madalena, essa é a primeira vez que o órgão faz um movimento sério em relação ao tratamento de dados pessoais, então, não há como comparar com situações do passado. De toda forma, considera que essa ação mostra que há uma busca pela efetiva adequação das empresas à legislação.
— Após a aprovação dessa lei em 2018, tivemos diversas postergações da cobrança da efetividade. Muitas empresas, entidades e órgãos públicos deixaram de fazer uma efetiva adequação, fazendo políticas de privacidade genéricas. A pandemia acabou contribuindo para o atraso do marco regulatório da proteção de dados. E, agora, pela primeira vez tomaram uma ação contra um grande player do mercado, algo que a União Europeia já vinha fazendo — explica o professor da FMP.
Pela primeira vez tomaram uma ação contra um grande player do mercado, algo que a União Europeia já vinha fazendo.
JULIANO MADALENA
Advogado e coordenador do curso de pós-graduação em Direito Digital da Fundação Escola Superior do Ministério Público
O advogado salienta que não devemos demonizar as aplicações de internet ou que utilizam a inteligência artificial, sendo necessário buscar um diálogo para encontrar equilíbrio entre o progresso tecnológico e a proteção do titular de dados pessoais. Também comenta que a ANPD deve trabalhar junto às companhias de forma permanente, não apenas nos momentos de crise:
— Não vejo como um movimento punitivo, mas como uma oportunidade de aprimoramento das práticas da empresa e do mercado para que melhorem a adequação dos seus processos tecnológicos em cumprimento à lei. A comprovação disso por parte da empresa deve ser contínua e o acompanhamento e fiscalização dos órgãos também. Só assim o titular dos dados pessoais, que está em uma situação de vulnerabilidade, terá segurança de que seu direito está sendo respeitado.
Em posicionamento enviado por e-mail à Agência Brasil, a Meta disse estar “desapontada com a decisão da ANPD” e considerou a medida “um retrocesso para a inovação e a competividade no desenvolvimento de IA”, que “atrasa a chegada de benefícios da IA para as pessoas no Brasil”.