Por Alice Bonafé
Desenvolvedora full stack da On2 e ativista de software livre pela Rede Mocambos
Em um mundo hiperconectado, surge cada vez mais a necessidade de analisarmos criticamente não apenas a forma como habitamos os territórios digitais, mas também as estratégias de resistência que utilizamos para praticar o exercício da liberdade dentro do virtual. Afinal, até que ponto somos livres na vida que levamos online?
Quando pensamos em território, o conceito colonizador nos remete à ideia de posse: a propriedade se torna algo que pode ser invadido, usufruído e destruído da forma como bem entendermos. Essa perspectiva molda a visão que temos a respeito dos territórios digitais.
Se falamos de tecnologia em nuvem, por exemplo, muitas pessoas têm a impressão de que estamos em um lugar etéreo, ou lugar nenhum. Mas isso é mera ilusão. Toda informação que encontramos, seja ela em nuvem ou em uma busca rápida no Google, está vinculada a máquinas e servidores específicos dentro de um data-center sob o poder de corporações. E, se alguém detém o poder territorial, esse espaço não pode ser considerado realmente livre.
É aqui que entra o debate sobre a busca por liberdade em territórios digitais. Para o sistema capitalista, manter o controle das atividades dos usuários é muito mais simples quando as informações estão centralizadas em grandes conglomerações. Então, como podemos criar uma estrutura descentralizada que possibilite às comunidades uma autonomia de autogestão em relação ao mercado?
No episódio “Territórios digitais livres: desafios e reflexões sobre o uso das tecnologias”, do N², podcast da On2, discutimos justamente as alternativas da militância no mercado de TI a partir de movimentos sociais que apoiam a descentralização da web e a preservação das identidades individuais e comunitárias. A Rede Mocambos é uma delas. Voltado à emancipação tecnológica, o coletivo se une à luta dos movimentos quilombola e indígena e já ajudou a levar acesso à tecnologia a muitos lugares marginalizados pela sociedade, como quilombos e comunidades ribeirinhas. O objetivo do projeto é promover infraestrutura digital para compartilhamento e conservação do patrimônio cultural de territórios remanescentes afro-brasileiros.
Uma das principais estratégias de resistência da Rede Mocambos é a Baobáxia, plataforma multimídia que opera em comunidades rurais com nenhuma ou pouca internet. Uma rede na Baobáxia significa uma coleção de mucúas ou nodos (nós), sendo que cada mucúa é um computador ligado na rede da comunidade, onde os usuários podem fazer upload da própria produção cultural (em áudio, vídeo, texto e imagens), o que facilita a perpetuação do acervo.
O repositório permite a troca e a sincronização de informações entre redes eventualmente conectadas, seja online ou offline. Dessa forma, é possível disseminar os dados até mesmo em comunidades sem acesso à internet e, de quebra, depender menos das grandes corporações para abrigar e construir uma rede de comunicação livre.
Além disso, a Rede Mocambos atua por meio da Rota dos Baobás, iniciativa que visa plantar baobás por todos os lugares e comunidades onde a rede passa. Majestosa tanto em tamanho quanto em significado, ela é considerada a árvore da vida e alicerce fundamental da cultura africana. Nesse sentido, em um caminho contrário à lógica do lucro e do capital que vemos na centralização de informações, o coletivo pensa primeiramente nos laços de afeto criados para depois elaborar uma rede que junte essas relações e memórias no plano virtual.
Atualmente, um número reduzido de grandes corporações centraliza os dados e o poder. Entretanto, assim como no caso da Rede Mocambos, existem soluções que nos aproximam de uma vivência livre no digital, em um modelo mais democrático, em ecossistema.
Contudo, nosso intuito não deve ser somente habitar esse meio, mas defender a soberania da sua liberdade. É preciso falar sobre produção, compartilhamento, gestão e uso das tecnologias de informação. Precisamos conhecer mais a fundo os espaços onde existimos, e participar de movimentos e coletivos pode ser um primeiro passo rumo à independência dos territórios digitais.