Durante milhares de anos, a Península Ibérica – onde ficam Espanha e Portugal – foi um local importante.
Os fenícios, vindos do leste distante, construíram portos comerciais três mil anos atrás, e os romanos conquistaram a região em torno de 200 a.C. Exércitos muçulmanos atravessaram o mar, vindos do Norte da África, e dominaram a Península Ibérica no século VIII d.C. Cerca de trezentos anos depois, começaram a perder território para os Estados cristãos.
Além de registros históricos e escavações arqueológicas, os pesquisadores agora têm novos dados sobre o passado ibérico: o DNA preservado nos antigos esqueletos da região. Arqueólogos e geneticistas estão extraindo material genético que abrange não apenas a história ibérica escrita, mas também sua pré-história.
"Queríamos unir as populações antigas e as populações modernas", disse Iñigo Olalde, geneticista da Escola de Medicina de Harvard. Olalde é o autor principal de um novo artigo publicado em "Science", que analisa o DNA de 271 ibéricos antigos.
Nos últimos anos, os cientistas criaram cronologias semelhantes de continentes inteiros, com base em centenas de amostras de DNA antigo. Agora, os pesquisadores estão começando a estreitar seu foco para regiões menores.
Com um total de 419 genomas humanos antigos obtidos em vários laboratórios, a Península Ibérica é um tesouro. Os cientistas recuperaram apenas 174 genomas antigos na Grã-Bretanha e só oito no Japão.
Esse registro amplo mostra que o perfil genético ibérico mudou acentuadamente em resposta a grandes acontecimentos da história, como a conquista romana. Mas os pesquisadores também descobriram evidências de migrações anteriormente desconhecidas. A península, ao que parece agora, já era um ponto importante muito antes do início de registros históricos, chegando até à última era glacial.
O mais antigo DNA humano ibérico conhecido vem de um esqueleto de 19 mil anos de idade, encontrado em 2010 em uma caverna chamada El Mirón, no norte da Espanha. O esqueleto pertencia a uma mulher, membro de um grupo de caçadores-coletores da era do gelo.
A população da Península Ibérica continuou a viver como caçadora-coletora por milhares de anos depois disso, muito depois do fim da era glacial. Olalde e seus colegas analisaram o DNA de quatro outros caçadores-coletores, enquanto uma equipe separada, no Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana, extraiu DNA de mais dez.
Ambas as equipes obtiveram o mesmo resultado notável: os caçadores-coletores ibéricos tinham uma mistura impressionante de genes, mostrando que descendem de dois grupos europeus profundamente distintos de caçadores-coletores.
Um desses grupos pode ter sua origem traçada até 35 mil anos, graças a um esqueleto descoberto em um local na Bélgica chamado Goyet. Os povos relacionados a Goyet se espalharam por toda a Europa e acabaram sendo substituídos em grande parte do continente, perto do fim da era glacial, por uma população geneticamente distinta.
O primeiro sinal do segundo grupo aparece há 14 mil anos, conhecido por pesquisadores por meio do DNA de um esqueleto de Villabruna, na Itália.
Mas na Península Ibérica, mostram os novos estudos, os povos de Goyet e de Villabruna coexistiram. Caçadores-coletores em toda a península tinham uma mistura de ascendência dos dois povos.
"Isso é surpreendente, porque não ocorre em outras áreas", disse Vanessa Villalba-Mouco, principal autora do estudo do Max Planck, publicado em "Current Biology".
Villalba-Mouco especulou que a geografia da Península Ibérica – localizada em um canto distante da Europa – pode ter permitido que o povo de Goyet sobrevivesse lá depois de desaparecer em outros lugares. "Talvez ninguém estivesse incomodando esses caçadores-coletores", disse ela.
Mas, qualquer que seja o isolamento que a península possa ter oferecido, ele acabou há cerca de 7.500 anos, quando novos povos chegaram trazendo plantações e gado. Esses primeiros agricultores, originalmente da Anatólia, trouxeram consigo uma assinatura genética distinta.
Após sua chegada, a composição genética dos ibéricos mudou drasticamente. Noventa por cento do DNA dos esqueletos posteriores derivam dos agricultores anatolinos; dez por cento vêm dos caçadores-coletores.
Mas essa mudança não foi a história simples de uma população mais antiga substituída por uma mais nova. A partir de cerca de seis mil anos atrás, descobriram Olalde e seus colegas, a ascendência de caçadores-coletores entre os agricultores ibéricos aumentou para 20 por cento.
É possível que tenham resistido além do advento da agricultura. Eles podem ter adotado a agricultura também, e talvez mais tarde as duas culturas tenham se fundido.
Por séculos depois disso, descobriram os pesquisadores, houve mudança no perfil genético dos ibéricos. Mas há indícios de algumas migrações marcantes.
Um esqueleto achado em uma sepultura bem elaborada na Espanha central, de aproximadamente 4.400 anos, pertenceu a um homem cuja ascendência era cem por cento norte-africana.
"Isso é uma loucura", disse David Reich, geneticista da Escola de Medicina de Harvard e coautor do estudo da "Science". "Checamos mais de uma vez, porque era muito estranho."
Outro resultado marcante surgiu quando os pesquisadores estudaram o DNA de uma mulher de 3.500 anos. Eles concluíram que ela tinha um avô do Norte da África.
Esses achados sugerem que alguns povos vinham para a Península Ibérica saídos da África mais de três mil anos antes da ascensão do Império Romano.
Esses achados sugerem que alguns povos vinham para a Península Ibérica saídos da África mais de três mil anos antes da ascensão do Império Romano. "São lugares cosmopolitas", disse Reich.
Cerca de 4.500 anos atrás, outra onda de pessoas chegou, alterando profundamente a composição da Península Ibérica.
Alguns séculos antes, nômades das estepes do que hoje é a Rússia apareceram na Europa Oriental com cavalos e carroças. Eles se espalharam por todo o continente, abrindo mão da vida nômade e se casando com os agricultores europeus.
Quando finalmente chegaram à Península Ibérica, essas pessoas se espalharam por toda a área. "Realmente, causaram impacto em toda a península", disse Olalde.
Mas o DNA desse período é impressionante e intrigante. Globalmente, os ibéricos da Idade do Bronze deviam 40 por cento de sua ascendência aos recém-chegados.
O DNA dos homens, no entanto, remontava às estepes. Os cromossomos Y dos agricultores masculinos desapareceram do pool genético.
Para os arqueólogos, a mudança é um enigma.
"Não sei dizer o que é", afirmou Roberto Risch, arqueólogo da Universidade Autônoma de Barcelona, que não esteve envolvido nos novos estudos. Mas descartou guerras ou massacres como causa. "Não é um momento particularmente violento", disse ele.
Em vez disso, Risch suspeita que "um processo político" seja a explicação. Em suas escavações arqueológicas, ele e seus colegas descobriram que os agricultores ibéricos viviam originalmente em sociedades igualitárias, armazenando sua riqueza juntos e enterrando seus mortos em sepulturas coletivas.
Mas, ao longo de vários séculos, palácios e fortalezas começaram a surgir, e o poder se concentrou nas mãos de poucos. Risch especulou que a mudança cultural tenha algo a ver com a mudança genética encontrada por Olalde e seus colegas.
A Idade do Bronze na Península Ibérica foi seguida pela Idade do Ferro, cerca de 2.800 anos atrás. Em esqueletos desse período, Olalde e seus colegas encontraram pistas de mais chegadas.
Os ibéricos da Idade do Ferro podiam traçar alguns de seus ancestrais às novas ondas dos povos chegando do norte e do centro da Europa, possivelmente marcando a ascensão da cultura celtibérica na península.
Além disso, os cientistas encontraram uma quantidade cada vez maior de ascendência do Norte da África em esqueletos da Idade do Ferro. Isso pode refletir o comércio pelo Mediterrâneo, que trouxe norte-africanos para cidades ibéricas, onde acabaram se estabelecendo.
A ascendência norte-africana aumentou ainda mais na Península Ibérica depois que os romanos a conquistaram. A península era então parte de um império que prosperou com o comércio generalizado. Ao mesmo tempo, as pessoas do sul da Europa e do leste do Mediterrâneo também começaram a deixar sua marca.
Essa mudança de ascendência poderia explicar um dos maiores mistérios da história ibérica. Os pesquisadores há muito se intrigam com a cultura distinta da região basca no norte da Espanha.
Os bascos falam uma língua que não está relacionada com outras línguas europeias. Alguns pesquisadores especularam que eles descendem de uma população distinta desde a Idade do Bronze, ou anterior.
Geneticamente, pelo menos, isso não parece ser o caso. Antes da era romana, os bascos tinham o DNA semelhante ao de outros ibéricos da Idade do Ferro, mas os genes romanos não chegaram ao País Basco.
Após a queda de Roma, o DNA antigo na Península Ibérica reflete sua história medieval. Esqueletos da era muçulmana mostram ascendência crescente do Norte da África e da África Subsaariana.
O que nos traz, apenas um milênio mais tarde, ao presente. Em fevereiro, Clare Bycroft, do Centro Wellcome Trust de Genética Humana da Universidade de Oxford, e seus colegas publicaram um estudo de DNA de 1.413 pessoas da Espanha.
A equipe foi capaz de identificar pedaços de DNA do Norte da África em indivíduos de todo o país. Os pesquisadores estimam que os antepassados norte-africanos viveram cerca de 800 anos atrás, durante o domínio muçulmano.
Os pesquisadores também puderam agrupar espanhóis em cinco grupos genéticos. Em um mapa, esses grupos formam cinco faixas que correm do norte para o sul. Essas faixas se alinham perfeitamente com a história.
No ápice do reinado muçulmano, alguns pequenos Estados cristãos sobreviveram na costa do norte da Espanha. Enquanto os muçulmanos iam perdendo o poder, aqueles Estados se expandiram ao sul, há cerca de 900 anos.
Até agora, largas faixas de tempo normalmente separavam estudos genéticos de pessoas vivas e de DNA antigo. Mas hoje, em lugares como a Península Ibérica, as lacunas estão sendo preenchidas, criando uma cronologia genética ininterrupta.
"Os dois mundos estão começando a se fundir", disse Bycroft.
Por Carl Zimmer