Por Jorge Barcellos
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
“A corrida, sempre a corrida”, diz o filósofo francês Paul Virilio (1932-2018) em A Bomba Informática. A notícia da modificação do genoma de dois bebês pelo cientista chinês He Jiankui, que veio a público no final de novembro, está distante da proposta da clonagem humana mas não deixa de impressionar. Sob o argumento de que “se ele não fizesse, outro faria”, sua experiência pode ser compreendida com o exemplo do que pode fazer a tecnociência que cede aos imperativos de mercado e que vê as possibilidades do patrimônio genético como horizonte de acumulação.
Como chegamos a isso? Em que pese todas as limitações apontadas pelos especialistas, para mim ainda assim é um pequeno passo na direção de uma nova eugenia. O risco pode ser distante, mas real, pois substitui-se o princípio da seleção natural de Charles Darwin pelo da seleção artificial de François Galton cujo final todos conhecemos na política voluntária de eliminação dos menos aptos, institucionalizado pela luta contra a degeneração do gênero humano. Porque não começar justamente usando o argumento dissuasório da luta contra o HIV? Ao que os cientistas retrucam: para quê tanta pressa?
No fundo, é uma proposta de industrialização dos seres vivos: se podemos já afetar minimamente o DNA, o que nos impede de ir mais adiante e realizar o delírio do homem novo, caminho para o extra-humano? Quando começou a corrida a decifração do código genético, o Departamento de Energia e o Instituto de Saúde dos Estados Unidos investiram US$ 10 milhões em pesquisas. Quando se obteve a informação da vida (o código do DNA), o grupo farmacêutico Perkin Elmer, especializado em máquinas de fazer sequenciamento de DNA e que havia aportado cerca de US$ 200 milhões, já podia comemorar a recuperação do investimento. Até agora, a única coisa que impedia os cientistas de se aventurarem no DNA era a lembrança do extermínio nazista. Estamos esquecendo isso, então?
A experiência é puro produto do exercício do farmacopoder definido por Paul Preciado: Pharmacia (Pharmakeia) também é o substantivo comum que significa a administração do pharmako, a droga, o medicamento ou o... veneno! A alteração do gene CCR5 pela CRISPR, portanto, não é algo tão trivial assim como querem nos fazer acreditar, já que é, num certo sentido, também uma “droga”: a partir do mecanismo de defesa antigo e natural encontrado em diversas bactérias objeto de observação nos anos 1980 que resultaram em repetições de sequências de DNA, “agrupados de curtas repetições palindrômicas regularmente interespaçadas”, ou CRISPR, na sigla em inglês.
O CRISPR é uma parte do sistema imunológico bacteriano que mantém partes de vírus perigosos ao redor para poder reconhecer e se defender funcionando, e de certa maneira, funciona como um fármaco, remédio ou filtro e é essa qualidade de antissubstância que merece ser questionada pela filosofia: que tipo de hegemonia de farmacopoder a experiência irá criar? Estamos no caminho da eugenia? É mais do que isso, é a biotecnologia como negócio global multibilionário se impondo sobre a ética em direção a nossos corpos. Ora, quem deu autoridade a Jiankui? Comportando-se como “aquele que sabe tudo e que não tem medo de nada”, no dizer de Joseph Goebbels, o que ambos compartilham? A defesa da superexposição permanente da vida e de seu controle: Goebbels para fins políticos, Jiankui, para fins comerciais.
Jiankui pratica uma forma de decomposição não apenas do corpo, mas da célula, através da engenharia genética micromolecular, nuclear, equivalente microscópico da guerra e lugar da gênese de nossas piores fantasmagorias. Cada célula é um canteiro de obras para o capital, e nesse sentido, o efeito desse farmacopoder é justamente dizer quem pode e quem não pode pagar para que seu filho não tenha HIV sobrepondo-se a questão ética fundamental: em que termos podemos ultrapassar o limite da vida humana a partir da qual não tenho como avaliar as consequências? Para Jiankui, nenhum, para estarrecimento do mundo científico. Querendo caminhar em direção à eugenia ou não, Jiankui coloca agora que não é apenas a possibilidade de clonagem que representa perigo, mas que a chamada “edição genética” é o melhor atalho na abertura de um caminho mais curto para monetarização da vida.
Walter Benjamin vislumbrou que a vida é uma obra de arte, e o que se perde nessa interferência de Jiankui é justamente a aura do humano, essa qualidade singular, especial e, nesse sentido, toda vez que o homem se torna o destino de uma forma econômico-política se perde o original.