De oficial do Exército a delegado de polícia no interior do Rio Grande do Sul, Fernando Antônio Sodré de Oliveira, 60 anos, circulou por diferentes espaços ligados à segurança pública e defesa. Nascido em São Paulo, ele chegou ao RS em 1987. No começo de 2023, no 182º ano da instituição, Sodré tomou posse como o primeiro chefe autodeclarado negro da Polícia Civil do Rio Grande do Sul. Naquela ocasião, em discurso na cerimônia de posse, o delegado disse que iria pautar sua gestão no combate ao crime organizado e à proteção de mulheres, pessoas LBGT+ e negros.
Zero Hora conversou com o delegado neste Dia da Consciência Negra (20) para entender como ele, que é doutor e pós-doutorando em Direitos Humanos, trabalha as temáticas de diversidade dentro da polícia civil gaúcha.
O senhor foi o primeiro chefe de polícia negro no RS. Como é discutir esse tema internamente no órgão e ser essa representação no Estado?
Primeiro, o sentimento de orgulho pessoal, familiar, de um grupo. Segundo, o compromisso. Eu me sinto compromissado a trazer uma reflexão e mudar a percepção das comunidades negras e pardas a respeito da polícia e conscientizar a polícia do fenômeno do racismo estrutural. A gente sabe que o racismo opera silenciosamente e é um grande impedidor das pessoas chegarem a diferentes locais. Quando chega alguém que a cor da pele não o impediu de estar num espaço de decisão, de representatividade, é um motivo de orgulho.
Não foi a cor da minha pele que me levou a minha função, mas ela não me impediu de chegar aqui.
Hoje, muitas pessoas me ligam dizendo que se identificaram comigo ao me verem na TV. Me dizem que perceberam que é possível chegar lá, que querem estudar. Essa minha posição tem uma função social muito relevante e eu preciso estar consciente disso.
O que o senhor trouxe de contribuição para a Polícia Civil do Rio Grande do Sul ao assumir a posição de chefia?
Trazer a minha experiência profissional, a visão do Interior para a Capital. Como fiz a minha carreira no Interior, sei que a polícia lá tem algumas particularidades, como a proximidade com a comunidade. Eu procuro ser um chefe disponível para as comunidades, para as entidades, para que o cidadão saiba que a polícia está presente. Do ponto de vista pessoal, no sentido cosmológico, da minha construção como pessoa e da minha formação acadêmica, procuro trazer à Polícia Civil a reflexão sobre esses processos que envolvem o respeito aos direitos humanos e como a valorização dessa área, que eu chamo de área de proteção, é importante.
O que a sua gestão já fez dentro da área de diversidade na Polícia Civil?
Nós já fizemos seminários e palestras sobre a questão racial para conscientizar as pessoas de que existe um fenômeno social que nós precisamos olhar. Também abordamos o combate ao neonazismo e antissemitismo. Sempre que sou convidado, faço palestras em universidades sobre isso, porque acho que é importante mostrar que a polícia é um órgão capaz, sim, de acolher as pessoas, de ser um protagonista de direitos humanos e não um antagonista de direitos humanos. Nós estamos criando um núcleo de Direitos Humanos. Ano que vem nós vamos formalizar esse núcleo para pensar a diversidade dentro da polícia, seja racial, seja de gênero, para que a gente possa propor políticas internas de articulação com outros órgãos nesse sentido.
Durante a sua gestão, temos a sequência de baixas nos índices de crimes como homicídio, latrocínio e feminicídio. Como o senhor concilia a repressão à criminalidade e o trabalho ligado aos grupos historicamente marginalizados?
Eu entendo a Polícia Civil como dois grandes pilares. Um de repressão à criminalidade, ao crime organizado, de controle de homicídios e crimes violentos. E o outro pilar, que eu acho muito importante, que é o da proteção. A proteção de grupos vulneráveis, de mulheres, pessoas vítimas de violência e de qualquer tipo de opressão. A polícia tem uma função de proteção muito grande, não só na parte policial em si, de investigação criminal, mas principalmente na escuta e acolhimento de vítimas de crimes.
A polícia não está só para cuidar ou só para reprimir, a polícia é as duas coisas. E eu procuro conscientizar os colegas dessa percepção.
Sendo uma polícia cidadã, acolhedora, a sociedade vai entender e nos legitimar quando tivermos que tomar uma medida repressiva e mais forte.
Quais são seus objetivos da sua gestão da Polícia Civil?
Eu tenho três objetivos. Primeiro, quero fazer uma gestão em que não só como a sociedade gaúcha, mas os próprios colegas reconheçam o crescimento da instituição. Crescimento no sentido de melhora do nosso processo de gestão, da nossa capacidade investigativa, da nossa capacidade de entregar aos policiais e agentes melhores condições de trabalho, de carreira, de reconhecimento dentro e fora da instituição. Segundo, é entregar para a sociedade gaúcha uma segurança cada vez melhor, menores índices de criminalidade e de violência, maior rapidez na resolução dos nossos fatos criminais, um melhor atendimento ao cidadão para que as pessoas se sintam mais acolhidas e tenham mais confiança na Polícia Civil. Terceiro, que a polícia seja vista como uma polícia que tem um olhar diferenciado para os mais vulneráveis, que procura atender bem as vítimas de violência, de preconceito, de discriminação racial, intolerância religiosa, as pessoas do grupo LGBTQIA+.
Quais são os teus próximos planos na gestão da entidade?
— Estamos agora criando, já com a autorização do governador, deve sair o decreto ao final do mês, uma nova estruturação da Polícia Civil gaúcha. A gente está chamando de "Polícia Civil do século XXI". Nós queremos atualizar nossas estruturas e fortalecer o combate aos crimes cibernéticos. Também queremos criar um departamento na Polícia Civil para ampliar a questão da saúde do servidor, que é submetido a muita tensão e estresse. Nós também queremos abrir mais duas delegacias de intolerância no Estado, uma na Serra e uma em Pelotas, porque queremos aprofundar o nosso departamento de proteção contra os vulneráveis, proteção da criança e adolescente.
A carreira de Sodré na Polícia Civil
É delegado da Polícia Civil desde 1998. De 2019 a 2023, atuava como titular da 13ª Delegacia de Polícia Regional do Interior, em Santo Ângelo, cargo que já havia ocupado de 2011 a 2015.
Entre 2016 e 2019, dirigiu o Departamento de Polícia do Interior (DPI), o maior departamento da instituição, responsável por coordenar 29 Regiões Policiais, abrangendo 470 municípios.
Sodré foi titular da 21ª Delegacia de Polícia Regional do Interior em Santiago, de 2015 a 2016. Entre 1998 e 2010, teve passagens na chefia de delegacias de polícia e distritos policiais nos municípios de Cerro Largo, Porto Alegre, Caxias do Sul, São Luiz Gonzaga e Santo Antônio das Missões. Ainda exerceu a função de coordenador de força-tarefa de combate a abigeatos.
É bacharel em Ciências Militares pela Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) e em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Concluiu dois mestrados: em Aplicações Militares, pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais/RJ, e em Filosofia, pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Também fez doutorado em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado do RS (Unijuí). Ainda tem especialização em Supervisão Escolar pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em Direito Penal pela UCS e em Segurança Pública pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Sodré ainda exerceu a docência no ensino superior.