Apesar de representar minoria no total de encarcerados no Rio Grande do Sul, a população negra é a mais presa no Estado em relação aos demais grupos étnicos, segundo levantamento da secretaria estadual de Sistemas Penal e Socioeducativo. Especialistas alertam que a tendência pode refletir consequências de mazelas sociais, como o racismo estrutural, e alertar para a urgência de políticas públicas voltadas ao amparo da comunidade negra e conscientização racial de agentes da segurança pública. O estudo utilizou dados extraídos em 30 de outubro do Sistema Infopen-RS, que tem informações sobre os presos do RS, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen).
Levantamento revela que 46,2 mil pessoas estavam recolhidas no RS em 30 de outubro. Destas, 15,4 mil eram negras — autodeclaradas pretas e pardas. Isso equivale a 33,5% do total de encarcerados. Mesmo assim, segundo a pesquisa, a reclusão de negros é 1,9 vezes maior do que o da população não negra no RS — considerada pelo estudo como autodeclarados brancos, amarelos e indígenas. Já os dados nacionais mostram que o encarceramento de pessoas negras em relação a pessoas não negras é 1,6 vezes maior.
A análise também mostra que a população negra presa é mais jovem em comparação com a não negra. A proporção dos encarcerados negros é maior entre aqueles com até 29 anos. A partir dos 35 anos, os percentuais da população negra tendem a cair, enquanto aumenta a parcela da população não negra.
O nível de escolaridade dos aprisionados e gênero também são pontuados pelo documento. Entre não-negros e negros, o cenário é o mesmo: homens são os mais detidos e predominam aqueles que não possuem Ensino Fundamental completo.
Racismo estrutural contribui para casos
O passado escravocrata do Brasil é um dos fatores que explica o maior número de encarceramento de pessoas negras no Rio Grande do Sul, analisa o doutor em Direitos Humanos e Chefe da Polícia Civil gaúcha, delegado Fernando Sodré.
— Esses fatores estruturais acabam criando uma percepção na sociedade de que possa existir um maior perigo em pessoas não-brancas, assim como uma maior vinculação delas em questões de caráter criminal. Mas, na verdade, isso é decorrente, basicamente, do processo estrutural de criação do Brasil, especialmente por causa da escravidão e do medo existente na sociedade pós-abolição — pontua Sodré, que foi o primeiro chefe negro da Polícia Civil do RS em mais de 180 anos da instituição.
As sequelas deixadas pelo período de escravidão no país são refletidas ainda hoje, com marcadores sociais de pobreza e escolaridade predominantes na população negra. Esses e outros indicadores levam à vulnerabilidade desta parcela, que, por vezes, acaba ingressando em processos de marginalização e criminalidade.
— A desigualdade social no Brasil tem fortes marcadores raciais. Pesquisas realizadas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), apontam que as pessoas pretas ou pardas são as que mais sofrem no país com a falta de oportunidades e a má distribuição de renda. Com efeito, condições de acesso ao trabalho digno, saúde e educação são muito limitadas à população negra — acrescenta o professor Lúcio Almeida, do curso de Direito da Universidade La Salle e fundador do Núcleo de Pesquisa Antirracismo da Faculdade de Direito da UFRGS.
Conscientização e trabalho de base
A urgência de políticas públicas voltadas ao amparo da comunidade negra e a conscientização de agentes da segurança pública em relação às temáticas sociais podem contribuir para a diminuição dos percentuais de detenção da população negra, acredita a advogada Eduarda Garcia, também diretora executiva do Instituto Caminho: Raça e Acesso a Justiça.
— Implementar políticas públicas de reparação histórica da população negra na área de saúde, habitação, renda, oportunidades de trabalho e empreendedorismo e, por outro lado, reestruturar a lógica da segurança pública, menos militarizada e discriminatória e mais inteligente e cidadã, são duas medidas complexas que contribuiriam para a diminuição dos índices de encarceramento em massa da população negra. Por fim, investir na reintegração social de pessoas egressas do sistema penal também é fundamental para humanização das pessoas que passaram pelo cárcere e para redução dos índices de reincidência criminal — pontua a advogada.
Segundo o delegado Fernando Sodré, atualmente a Polícia Civil do Rio Grande do Sul vem trabalhando com o tema de segurança antirracista, incluindo treinamento e seminários periódicos.
Estudo
Levantamento é uma ação do Observatório do Sistema Prisional do governo estadual e tem o propósito de destacar as singularidades da população negra, autodeclarados pretos e pardos, no sistema prisional gaúcho em comparação com as pessoas privadas de liberdade (PPL) não negras.
O boletim também soma esforços à Comissão de Elaboração, Monitoramento e Implementação da Política Penal de Enfrentamento ao Racismo no Âmbito do Sistema Prisional, instituída pela Secretaria de Sistemas Penal e Socioeducativo (SSPS) e da Polícia Penal. A comissão busca realizar ações e metas regionalizadas, voltadas à promoção da equidade étnico-racial entre os servidores, as pessoas privadas de liberdade e os egressos do sistema prisional.
— O governo do Estado tem avançado cada vez mais na disponibilização de dados que traçam o perfil do preso no Rio Grande do Sul, e isso é fundamental para que as políticas públicas possam ser direcionadas e focadas. Por exemplo, ao verificar que a baixa escolaridade é predominante entre a população negra presa, podemos promover ações específicas de incentivo ao ingresso na educação formal voltadas a essa parcela. O objetivo é viabilizar atividades que assegurem a equidade de oportunidades nas políticas públicas de assistência e tratamento penal, conforme dispõe o Plano de Ação de Enfrentamento ao Racismo no Sistema Prisional — pontua o secretário de Sistemas Penal e Socioeducativo do RS, Luiz Henrique Viana.