Moradora de Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo, Ana Vereni dos Santos, de 50 anos, sofreu uma das maiores dores que uma mãe pode sentir: perdeu sua filha mais nova, assassinada aos 22 anos. Letícia Vitória Corrêa foi vítima de feminicídio no dia 2 de maio deste ano, em Florianópolis.
A vítima morava na capital de Santa Catarina havia dois meses, após deixar a cidade do Vale do Rio Pardo com o marido Michael Rodrigues Gonçalves, de 29 anos, e os três filhos de ambos — um bebê de seis meses e os mais velhos de três e cinco anos. Michael foi preso em flagrante pelo assassinato da companheira.
Além de lidar com o luto, Ana tem lutado para conseguir a guarda dos netos. Quando Letícia foi assassinada e o pai das crianças preso, Ana não pode ir buscar as crianças devido à enchente, que bloqueou as estradas para sair do Estado. Sem nenhum parente disponível para buscá-los, os netos entraram em uma casa de acolhimento em Santa Catarina. Desde então, a avó não falou mais com eles.
— Eu falo com a assistente social que cuida deles, ela diz que estão bem, mas não consegui falar com eles.
Logo que as estradas abriram, Ana se disponibilizou a ir buscar as crianças. Porém, uma vez acolhidas em instituição da rede de proteção, elas só podem sair após um processo criterioso, que, segundo o Conselho Tutelar, visa a garantia da segurança dos menores.
— O acolhimento é sempre emergencial. Tudo depende do caso, mas toda rede de proteção deve se movimentar para que elas não fiquem em acolhimento, e sim, no seio familiar — explica Vitória Sant’Anna, conselheira tutelar de Porto Alegre.
“Tudo que me resta agora são eles.”
ANA VERENI DOS SANTOS
Avó das crianças que ficaram órfãos após feminicídio.
Além da angústia pela demora e da saudade dos netos, a avó também pensa em como o tempo de afastamento pode afetar as crianças. Ela teme que ficar longe da família, em um momento tão delicado, seja traumático.
— Já faz quatro meses. Me preocupo porque quanto mais o tempo passa, mais eles vão esquecendo da gente. E eles têm família. Não há porque ficarem no meio de pessoas estranhas, se podem ficar aqui em casa — argumenta Ana.
A conselheira Vitória afirma que a preocupação da avó é válida e que, inclusive, existe um capítulo no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que versa sobre a importância da convivência familiar e comunitária.
— Pode demorar. Geralmente é rápido, mas é uma demanda enorme do Judiciário. Legalmente não é para demorar, pois a criança tem o direito de permanecer o tempo mínimo em acolhimento — afirma a conselheira.
“Só falta eles”
Ana conta que muitas pessoas, após saberem do crime, a ajudaram a se preparar para receber o netos. Além das doações recebidas, a avó ainda guarda coisas que eram dos netos quando moravam com ela.
— Tenho tudo em casa, só falta eles. Eu que criei eles, sei do que precisam, do que gostam — conta a avó.
Uma assistente social e uma psicóloga já fizeram visitas à casa de Ana para analisar o pedido da guarda. Mas a avó ainda não teve respostas.
— Eles pedem para eu aguardar, mas eu não aguento mais esperar. Tudo que me resta agora são eles — diz — Tá difícil. Eu estou me arrastando.
Saudades
Ana conta que a distância não era comum no relacionamento com a filha. Antes de ir para o Estado vizinho, Letícia morava com a mãe, que ajudou na criação dos netos desde o nascimento do mais velho.
Mesmo após a mudança, o contato era diário:
— A Letícia falava comigo por telefone todo dia, eu estava sempre falando com eles. Um dia antes dela morrer, me mandou um vídeo deles me dizendo “oi, vovó”.
Também devido à enchente, Ana não conseguiu buscar o corpo da filha e nem realizar um velório.
— Quando foi liberada a estrada, já fazia muito tempo que havia morrido e aí não me deixaram ver ela — lamenta a mãe. — Minha filha foi cremada lá, sozinha. Não tinha ninguém com ela.
O crime
Conforme a Polícia Civil, no dia do crime um vizinho ouviu uma “forte discussão” entre o casal. Ao perceber que algo mais grave poderia acontecer, o morador entrou na casa ao lado, mas já era tarde. O vizinho flagrou Michael em cima de Letícia, que já havia sido atingida por um golpe de faca na garganta.
A Polícia Militar foi acionada e deu voz de prisão em flagrante ao homem, que ainda teria resistido. Michael teria se negado a cooperar com os PMs, que utilizaram gás de pimenta para contê-lo. O crime teria ocorrido na presença dos três filhos do casal.
Segundo Ana, o relacionamento da filha com o genro era “conturbado”:
— Quando ela estava conosco ficava tudo bem. Mas aí ele chegava e ela mudava, ficava transtornada. Parecia que ele fazia uma lavagem cerebral nela.
O casal havia terminado e voltado algumas vezes. Letícia chegou a reconhecer que era vítima de violência doméstica e buscou ajuda. A Polícia Civil do Rio Grande do Sul confirmou que em 2022 foram registradas denúncias de violência doméstica envolvendo o casal e foi pedida uma medida protetiva de urgência neste mesmo ano. O homem chegou a ser preso na Lei Maria da Penha.
Entretanto, Letícia reatou com o companheiro uma última vez. Foi quando se mudou para Santa Catarina com ele, sem contar aos familiares.
— Só soube quando ela já estava lá. Ela não contou porque sabia que a gente não ia gostar — conta a mãe.
O Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) denunciou o homem por feminicídio. Agora como réu, ele permanece preso e a instrução processual já foi encerrada. O processo está em fase de alegações finais.
O MPSC também informou que não pode se manifestar sobre o caso da guarda dos netos de Ana em função do sigilo determinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. No Judiciário catarinense, a Vara da Infância e Juventude também não quis se manifestar sobre a situação.
Contraponto
A defensora pública que assiste o réu, Fernanda Mambrini Rudolfo, disse que Michael Rodrigues Gonçalves "reconhece o erro e entende a necessidade de ser responsabilizado". Acrescenta que a Defensoria Pública de Santa Catarina vai "atuar para que eventual pena aplicada seja justa, sem excessos e em respeito aos seus direitos”.
* Produção: Camila Mendes